Lei de Bases da Saúde: a importância da Base 18
O SNS tem de continuar a ser o pilar da prestação de cuidados de saúde ao cidadão, mas é na gestão que se concentram os seus principais problemas.
A proposta de Lei de Bases da Saúde do Governo, remetida para aprovação da Assembleia da República, é um enunciado de princípios cuja implementação dependerá de legislação regulamentar futura. Antes de passar ao comentário específico a que me proponho, quero deixar claro que, apesar de algumas críticas que tecerei ao funcionamento do nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), é minha profunda convicção de que ele tem uma qualidade acima da média da dos congéneres dos outros países da UE. Uma classificação recente (2017) põe-no em 14.º lugar, imediatamente a seguir à Áustria e Suécia e acima do Reino Unido, Espanha e Itália. Seria bom que os nossos concidadãos o vissem deste modo.
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A proposta de Lei de Bases da Saúde do Governo, remetida para aprovação da Assembleia da República, é um enunciado de princípios cuja implementação dependerá de legislação regulamentar futura. Antes de passar ao comentário específico a que me proponho, quero deixar claro que, apesar de algumas críticas que tecerei ao funcionamento do nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), é minha profunda convicção de que ele tem uma qualidade acima da média da dos congéneres dos outros países da UE. Uma classificação recente (2017) põe-no em 14.º lugar, imediatamente a seguir à Áustria e Suécia e acima do Reino Unido, Espanha e Itália. Seria bom que os nossos concidadãos o vissem deste modo.
Esta proposta de Lei de Bases pouco modifica a de 1990. Contudo, suscitou grande controvérsia. A começar pela apresentação pública. Deixo aqui um cumprimento à Dra. Maria de Belém Roseira, que dirigiu o grupo de trabalho que elaborou a primeira versão, alterada pelo Governo, obviamente para a “acertar” sob o ponto de vista de política partidária. As duas questões mais polémicas têm sido a da relação entre o setor público e o privado e a da dedicação plena (vulgo, exclusividade) dos profissionais, especialmente os médicos.
Vamos à primeira: a proposta do Governo prevê que “o direito à proteção da saúde pode ainda ser assegurado, sob regulação e fiscalização do Estado, pelo setor privado e social”, em regime de cooperação, através de “acordos” ou “contratos”. É óbvio, para quem está atento a estes assuntos e os não quer encobrir por qualquer manto ideológico, que o setor privado é hoje, e no futuro ainda mais, um complemento essencial do SNS na prestação de cuidados de saúde aos cidadãos, mesmo aos que não estão cobertos por qualquer seguro ou outro esquema de saúde. Se, por qualquer circunstância aberrante, o setor privado desaparecesse, o SNS colapsaria instantaneamente, porque não tem, e nunca terá, capacidade para tratar todos. Não se compreende, pois, a resistência à complementaridade — não concorrência — entre público e privado.
Uma questão completamente diferente é a de que o setor privado possa estar, e está certamente, a aproveitar-se da reconhecida ineficiência do SNS. “Ineficiência e desperdício” foi o subtítulo que dei ao livro A Doença da Saúde que publiquei há 18 anos, que quantificava empiricamente como sendo de 25%, número que viria a ser confirmado depois pelo Tribunal de Contas e que sucessivos ministros minimizaram. Ora, o desperdício só pode ser drasticamente reduzido se se aperfeiçoar a gestão do SNS a todos os níveis, desde o topo até à base.
A isso se refere a Base 18, e daí a sua importância. Nela se lê que “a organização interna dos estabelecimentos e serviços do SNS deve basear-se em modelos que privilegiam a autonomia de gestão, os níveis intermédios de responsabilidade e o trabalho de equipa”. Ora esta afirmação será completamente inconsequente se não for posta em prática por nova legislação. Que, aliás, já existe ou existiu, mas nunca houve coragem de implementar a sério.
De facto, as administrações hospitalares continuam a ser nomeadas com base em conceitos políticos e filiações partidárias — veja-se como são quase todas mudadas assim que uma nova cor política atinge o poder, e sem qualquer preocupação de carater curricular no que respeita à experiência e qualidade da gestão.
Mas mais grave é a resistência em reconhecer que é ao nível intermédio, nos serviços, que são tomadas as decisões que resultam na despesa e na poupança. São eles que detêm a chave da produtividade e qualidade na prestação de cuidados. Naturalmente, com a responsabilidade dos diretores, mas a quem são atribuídas poucas competências e ainda menos é exigido. E, evidentemente, dos restantes profissionais que são, geralmente, pouco incentivados e ainda menos recompensados. As carreiras têm sido persistentemente menorizadas e os salários muito pouco competitivos.
Foi por isso que se criaram os centros de responsabilidade, com a filosofia de aumentar a autonomia e responsabilização, e eventual premiação do desempenho. Ora esta modalidade de gestão intermédia nunca teve adesão significativa por parte dos responsáveis, quer pelos conselhos de administração, certamente pelo receio de alienarem algum do pouco poder que ainda detêm, quer pelos diretores de serviço, que não vêem razões para a assunção de mais responsabilidades. Poucos foram criados e o mais conhecido, o da cirurgia cardiotorácica de Coimbra, que eu criei e dirigi durante quase 20 anos, há muito deixou de existir na prática, por falta de delegação de competências.
E é aqui que entra na equação o outro ponto de controvérsia, da ‘dedicação plena’ ao SNS por parte dos profissionais, especialmente pelos médicos. Esta hipótese é vagamente introduzida, pela primeira vez, numa Lei de Bases da Saúde. Novamente na Base 18, que reza: “no seu funcionamento, o SNS sustenta-se numa força de trabalho planeada e organizada... numa evolução progressiva para a criação de mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas, estruturadas em carreiras...”
A ‘exclusividade’ dos médicos já fez parte das opções no passado, mas deixou de o ser. De facto, nunca despertou muito entusiasmo da classe, apesar da majoração do vencimento, contudo não suficientemente incentivadora. Por isso, há necessidade de se introduzirem outros mecanismos favorecedores. Incluindo a obrigatoriedade para os que iniciam a carreira, evidentemente, com as necessárias compensações.
E para os diretores de serviço. É que um dos muitos problemas com que se defrontam, no sistema atual, é a total incapacidade de ‘controlar’ a prestação de profissionais que se dividem entre as suas ‘obrigações’ no SNS e a sua ‘devoção’ ao setor privado. Bem sei que isto é muito controverso, mas afirmo-o com o à vontade de quem serviu o SNS, em exclusividade absoluta, durante mais de três décadas!
Em conclusão, o SNS tem de continuar a ser o pilar da prestação de cuidados de saúde ao cidadão, mas é na gestão que se concentram os seus principais problemas. Com melhor gestão, muito do desperdício seria evitado, com um significativo aumento da produtividade que permitiria, entre outras coisas, reduzir consideravelmente as listas de espera. Deste modo, com uma diminuição da sua dependência de outros prestadores.
Na Base 18 reside, pois, o segredo do sucesso da Lei de Bases, mas é necessária muita vontade política e determinação para a implementar. Não estou muito convicto de que vá acontecer desta vez. Como disse alguém, “se continuarmos a fazer o que sempre fizemos, continuaremos a obter os resultados que sempre obtivemos”.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico