Nas algoraves, os códigos dão música e depois faz-se a festa
Surgiram em Londres em 2012 e já passaram por Portugal. O que se faz nas algoraves pode ser o próximo passo na música electrónica e computacional. Unem-se clubbers e geeks, escrevem-se códigos ao vivo que dão origem a sons e imagens. E dança-se.
Esta podia ser uma festa qualquer. Há música, luzes e dança. Mas também há códigos a surgir nas costas do artista, que os digita no seu computador. E são esses símbolos — números, chavetas, letras e outros caracteres — que dão azo a uma gama vasta de sons (ou imagens). Chamam-lhes algoraves. Adivinhar o significado do termo não é difícil: a primeira parte da palavra vem de “algoritmos”, que geram música ao vivo, e as raves são festas de música electrónica, onde também podem entrar outras manifestações artísticas. Tudo começou em Londres, mas, ao longo dos anos, os códigos foram dando música a muitas outras cidades.
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Esta podia ser uma festa qualquer. Há música, luzes e dança. Mas também há códigos a surgir nas costas do artista, que os digita no seu computador. E são esses símbolos — números, chavetas, letras e outros caracteres — que dão azo a uma gama vasta de sons (ou imagens). Chamam-lhes algoraves. Adivinhar o significado do termo não é difícil: a primeira parte da palavra vem de “algoritmos”, que geram música ao vivo, e as raves são festas de música electrónica, onde também podem entrar outras manifestações artísticas. Tudo começou em Londres, mas, ao longo dos anos, os códigos foram dando música a muitas outras cidades.
Alex McLean sintetiza o que acontece numa algorave: “Há um loop de feedback. Os músicos em palco escrevem códigos. Os sons saem das colunas, que experienciamos como música, e as pessoas dançam. Mas depois volta ao início, porque o músico responde à audiência.” O britânico deu a explicação numa TEDx Talk. Não havia ninguém melhor para falar sobre isto: McLean, de 43 anos, é um dos fundadores do próprio movimento — uma experiência “onde não existem limites”, como explica ao P3.
É uma subcultura “à escala mundial”, com algoraves a fazer dançar curiosos e connoisseurs da causa, que tanto podem ser de Tóquio como da Cidade do México — ou de tantos outros destinos. “Estas festas já aconteceram em mais de 80 cidades. A qualquer passo descubro comunidades”, conta. Começou a fazer música algorítmica “a partir de 2000” com Adrian Ward, na banda Slub. Foi em 2004 que decidiu dedicar-se “exclusivamente ao live coding”, com os projectos Canute e Yaxu (a solo). As festas começaram mesmo em 2012.
Dois anos depois, McLean aterrou no Porto para a segunda edição da xCoAx (Conferência da Computação, Comunicação, Estética e X). O evento internacional, que, entretanto, passou por Lisboa em 2017, reserva um espaço para estas performances. Miguel Carvalhais, co-fundador do xCoAx, crê que a autenticidade destes eventos se deve ao facto de a “programação ser feita ao vivo e à larga maioria da música produzida estar no espectro das músicas de dança”. E isso pode atrair mais gente, contribuindo para tal o maior número de eventos com live code dentro. É que a cultura clubbing anda de mão dada com a vertente geek da coisa durante os “15 a 30 minutos” de cada performance.
Como aquelas que aconteceram na ICLI (Conferência Internacional sobre Live Interfaces) do ano passado, no Porto, que o também músico ajudou a organizar. “À medida que a utilização de computação e algoritmia para a produção musical deixa de ser uma novidade, passa a ser mais facilmente aceite pelo público em geral”, defende. No entanto, Miguel crê que ainda se fala “de um segmento relativamente pequeno, embora haja algumas excepções que se tornam mais populares”.
O algoritmo como pensamento
Para André Gonçalves, de 39 anos, “o que diferencia a algorave, mais do que ser música de algoritmo, é fazê-la acontecer com live coding”. O artista e criador de instrumentos fez a Música Eterna, uma aplicação “sem duração ou formato fixo”. Não é live coding, mas segue o pensamento de que a música “não deve ser fixa, mas antes mutável”; para além disso, joga com algoritmos e com a aleatoriedade — ingredientes-chave na música que se ouve nas algoraves. É preciso algum jogo de cintura para acompanhar os ritmos fracturados e as camadas inesperadas, mas tudo isto ajuda a coser a malha sónica que agasalha a festa. E se há estranheza, André sugere uma comparação entre “os ecrãs gigantes dos palcos em festivais de música, onde vemos os instrumentos, e o que se faz numa algorave”.
Se os instrumentos mais convencionais prendem a atenção do espectador, por que não o haviam de fazer os computadores? Foi esse o motivo que levou Alex McLean a aceitar o desafio de tornar as linhas de código em algo mais: “Em 2000, quando comecei a fazer música, a ideia de que o coding podia ser criativo não era muito conhecida.” Mas, para o provar, era necessário mostrar, para que os mais cépticos vissem o que ali estava a criar. “Mostrar os nossos ecrãs e os códigos foi uma maneira natural de nos afirmarmos como criadores da nossa música. De outra forma, as pessoas pensavam que era tudo feito pelos computadores.” “É uma questão identitária”, acrescenta Miguel Carvalhais.
Esta é uma das maiores regras dentro do movimento. Existem apenas mais algumas — não muito exigentes — para seguir a essência daquilo que Alex McLean ajudou a fundar na década passada. É o manifesto da TOPLAP, organização de live coders prestes a assinalar 15 anos. Para além da primeira, que já desvendámos, é importante notar que “o algoritmo é um pensamento e não uma ferramenta”. E não, não se espera que a audiência perceba de coding para apreciar uma performance deste género. “Tal como não é preciso saber tocar guitarra para apreciar uma performance de guitarra”, lê-se no manifesto.
Computador, o instrumento; live coder, o compositor
“O computador é o instrumento”, diz André Gonçalves. “E há um trabalho de compositor puro, porque o que eles fazem é compor. Usa-se o computador para sequenciar e editar, e o músico toma as decisões do início ao fim”, acrescenta. Mas nem tudo isto é novidade. “Para falarmos de música gerada por algoritmos, podemos recuar até 1960, com o exemplo do [Iánnis] Xenákis”, acrescenta. O compositor nascido na Roménia fez acontecer o encontro entre a evolução tecnológica e a música clássica — algo que materializou a sua abordagem matemática na composição musical, como aconteceu em Terretektorh. Ou então falar de John Cage, que suscitou gargalhadas curiosas a quem nunca tinha visto algo semelhante à sua performance em Water Walk. Isso não quer dizer que um algoritmo seja exclusivamente musical: “É um conjunto de regras que devem ser respeitadas, basicamente. Há pintores que o fazem.”
Por cá, o live coding não é, ainda, a bandeira de muitos artistas. Contudo, a música algorítmica, o experimentalismo e a vanguarda a si associados são já bastante explorados por músicos como Miguel Carvalhais, que também colabora com Pedro Tudela no projecto @c. Em 2003, com Pedro Almeida, Paulo Vinhas, João Cruz e LIA, fundaram a Crónica, uma editora de música “experimental, electrónica, de vanguarda” e também de “arte sonora”. Apesar da “apetência particular para a música computacional”, há fluidez suficiente no projecto para se abraçarem outras margens sonoras — com ou sem o que define as algoraves. “Embora não tenhamos trabalhado com live coding, trabalhamos frequentemente com processos e composição algorítmica, música electrónica e computacional abstracta.” Nos projectos nacionais mais antigos apontam-se os zzzzzzzzzzzzzzzzzp!, dos quais Miguel fez parte, “no início de 1990”. “Já tínhamos algumas referências fora da academia, como os Telectu, os Osso Exótico ou os Mute Life Dept. Mas era, e é, uma cena bastante pequena”, refere.
E também não se fala de algorave como género musical. Para Alex McLean, “alguns géneros estão a emergir, lentamente, à sua volta”. “Comporta-se como um em certas formas, mas ninguém o controla. É mais uma maneira de fazer música”, resume, para além de apontar a vertente visual. Aliou as duas no Tidal Cycles, que cria música e imagem ao mesmo tempo. Miguel Carvalhais alarga o pensamento à música computacional: “Vejo-a como uma nova maneira de fazer música, uma forma de trabalhar que, pela sua natureza, se presta a uma fluidez e alcance que outras não possuem.”
Quase como elementos líquidos, os códigos escorrem livremente pela tela (e teclado) fora — e como cada um quiser. McLean gosta do improviso, mas diz existirem “tantas abordagens quanto pessoas”. A música “varia de uma performance para a outra” e a festa vai-se fazendo, com mais ou menos aleatoriedade. “Se não houver um excêntrico que pensa a música de forma diferente, que faz coisas estranhas para o ouvinte comum, não há evolução”, atira André Gonçalves. Palavra de ordem: dancemos (cépticos ou não).