A Tailândia de carne e osso
Com um pé em Banguecoque e outro a mundos de distância, visitámos templos fluorescentes, mergulhámos no rio Kwai, batemos a portas e ouvimos histórias, aprendemos tradições e ofícios antigos. Até fizemos amizade com uma elefante chamada “Bom Dia”.
Banguecoque que amanhece não é tão exaltada como Banguecoque que anoitece – os pores do sol é que andam na boca de toda a gente, inclusive de Katai (a alcunha de Miss Kanyarat Rattanawan – é assim, com o “miss”, que nos escreve o seu nome), a nossa guia. Contudo, ver o sol a espreguiçar-se e a cidade estremunhar é quase como andar pelos bastidores antes do início de um (grandioso) espectáculo. O relógio ainda não chegou às seis horas da manhã, há um jogo pouco subtil de sombras e dourados, as ruas e avenidas estão transitáveis como nunca, da massa humana impenetrável não temos visão.
No Wat Benchamabophit (Templo de Mármore), cerca de duas dezenas de monges budistas, o inconfundível traje cor-de-laranja, taças na mão, deambulam diante do portão. Já há um casal em oferendas, hão-de chegar mais; os vendedores de comida também hão-de aumentar. É um ritual budista: trazer comida aos monges (ou flores, incenso) – trazer “almas”. Na aldeia de Katai, são muitos os que cumprem o ritual, aqui, são poucos (vêm mais ao sábado e domingo, altura em que há cerimónias), nós entre eles. É a primeira manhã da nossa estadia na Tailândia e queremo-la abençoada.
Katai já traz embrulhos, com direito a laço e vários produtos embalados, mas ainda compra mais numa banca já aberta. Bagre e, pela avó, que morreu, frango com “o seu curry preferido”. Somos actores num cenário que desconhecemos – imitamos Katai: descalçamo-nos, baixamos a cabeça, estendemos as caixas, juntamos as mãos e “pensamos no que de bonito vem ao nosso coração”. Pelos pobres, pela nossa reencarnação... Há outra banca, mais pequena, onde se compram sacos de peixes vivos (100 bahts), para lançar ao canal, logo ali. Pela vida, longa e mais fácil.
Há três dias, Pradit (Pa Pa) chegou ao templo. Pelos pais, pela família que espera ter. É uma tradição tailandesa, os homens passarem algum tempo num mosteiro para aprender a religião e prepararem-se para a vida. Pradit tem 33 anos, acabou um mestrado em Project Management e decidiu que era chegada altura.
É dos poucos monges do grupo que falam inglês, pediu licença no trabalho (hábito comum) e vai ficar 15 dias. Dentro de um ou dois anos, espera voltar. “Antes de me casar.” Por estes dias responde por Papawat Thano, o nome de monge: “É como deixares a tua vida e renasceres”. No templo, faz meditação, cânticos e come apenas duas vezes por dia (os monges não comem depois do meio-dia). Quer tornar-se “boa pessoa”, mas não espera nada. “A espera faz-nos sofrer quando não conseguimos o que esperamos”, explica em voz baixa, lenta. Às 7h, os monges retiram-se para o interior do mosteiro.
Intrometemo-nos no quotidiano tailandês e continuaremos a fazê-lo: viemos à Tailândia ser metediços – até porque as portas estão, afinal, abertas, descobriremos. Falta, se calhar, escancará-las e, cartas na mesa, é essa a ideia da Autoridade do Turismo da Tailândia com a promoção de “experiências locais”.
É no seu encalço que conhecemos uma Tailândia que vive fora do circuito turístico habitual (praias, elefantes – e Banguecoque, porta de entrada e de saída) mas que lhe está a bater à porta. Uma Tailândia que se faz de tradições e ofícios que se querem transmitir – e de OTOP, “One Tambon One Product”, um projecto que promove produtos indígenas como forma de impulsionar as economias locais e os rendimentos das famílias: reúnem-se em villages (comunidades). Nós percorremo-la, em cidades e aldeias com villages dentro, nas histórias de alguns dos seus protagonistas, ao mesmo tempo que conhecemos elefantes, entrámos em templos e até mergulhámos no rio Kwai. Damos muitas voltas: nunca nos afastamos muito de Banguecoque, mas damos por nós a mundos de distância.
Almas em taças
Ainda não saímos de Banguecoque e continuamos com divindades em nosso redor: estátuas de Buda numa multiplicidade de posições, deuses hindus, tecidos laranjas, velas, incenso e parafernálias que desconhecemos. A Rua Bamrung Muang parece um centro comercial para os templos (e crentes). As lojas sucedem-se nos edifícios que parecem ter-se esquecido da idade, mas é praticamente na rua (apenas uma cobertura de zinco e duas paredes de madeira sobre o empedrado do passeio), que descobrimos a escola de “taças dos monges” (“taça das almas”) – e a sua manufactura é uma tradição secular. O barulho é quase ensurdecedor: as taças são de ferro e o martelar é constante.
A “escola” é como uma oficina antiga, desordenada, entre ferro amontoado, papéis, ventoinhas; nas paredes, molduras douradas com fotografias (o habitual: família real e monges). Há seis pessoas a trabalhar, um banco baixo de madeira e cada qual na sua azáfama privada – uma linha de montagem humana. Saem oito por dia, trabalha-se sete dias por semana, são as preferidas dos monges. “Porque são boas, são de ferro”, explica Hiran Seuasriserm, o professor, traduzido por Katai (será ela a ponte constante nesta viagem, de outra forma estaríamos perdidos, sem tradução). E porque são feitas seguindo a disciplina budista original, “com determinação e fé”, lê-se na placa que contextualiza o que observamos. Cada taça pode durar centenas de anos, mantendo o som claro como uma campainha.
Khun (“senhor” ou “senhora” – os nomes em tailandês são sempre ditos com o “título”, e são vários, estabelecendo o nível de deferência) Prachung, 79 anos, vai-nos testar: faz soar uma das suas taças e uma outra feita numa fábrica – o primeiro som sai cristalino, o segundo algo abafado. Já estamos em pleno Baan Bat (“Monk’s Bowl Village”, lê-se na placa à entrada) e ele trabalha numa rua curta e estreita como um corredor, onde ainda assim passam motas (omnipresentes na Tailândia).
De calções coloridos, tronco nu, cabelo rapado, descalço, faz questão de nos fazer uma demonstração de algumas fases da sua arte. Dele e da comunidade, onde há 250 anos muitas gerações martelam o ferro para fazer as “taças das almas”. São novos e velhos a trabalhar, com o barulho a sobrepor-se à música constante neste dédalo sufocante onde quase tudo se passa nas ruas, polvilhadas de guarda-sóis e altares: as oficinas são completamente abertas (as traseiras, a habitação, espreitam-se: escuras, anárquicas, com as indispensáveis televisão e ventoinha), o restaurante do bairro também.
Uma ilha de artesãos
De Banguecoque a Kho Kret são 45 minutos de barco, rio Chao Phraya acima. De carro, a viagem é mais demorada, ultrapassando os subúrbios da capital (lojas mais lojas, centros comerciais) que não sabemos bem onde terminam. Sabemos que Kho Kret é já na província de Nonthaburi e é uma ilha artificial, abrigo do povo Mon, originário da Birmânia, desde os tempos do reino de Ayutthaya. Em poucos quilómetros quadrados, cinco mil pessoas e um modo de vida que se fez turístico.
De barco, damos a volta à ilha e em canais vizinhos, casas penduradas sobre a água, coloridas ou decrépitas, quase sempre com alpendres, varandas pelo menos. Algumas são lojas, outras fábricas, todas são residências, numa confusão natural por aqui entre o público e o privado. Os atracadouros são indispensáveis: pela água chega a mercearia (os longos barcos, como canoas mais esguias, vendem de tudo, de galinhas vivas a açúcar), as visitas, os turistas.
Chegamos nós a uma loja-atelier-oficina de batik, que é uma arte de decorar tecidos originária da Indonésia. Chegou há 200 anos e na família de Nu Naa a técnica de tingir tecidos desenhando os motivos à mão é uma tradição há várias gerações. Por isso, esta foi a sede para a formação que o governo deu em 2004, com o objectivo de dar trabalho às mulheres, conta, na única comunidade muçulmana de Koh Kret.
Faz-se desde sarongs a pequenas carteiras, passando por chapéus-leques (muito úteis na Tailândia) e as inevitáveis t-shirts; há workshops para visitantes e kits DIY Batik. Estes, vêm com os padrões desenhados, tradicionais (história dos Mon e a natureza) e novos – sempre com o azul batik (indigo) como cor-rainha. Hoje, só Nu Naa, 28 anos que parecem 18, está na loja, com a filha de dois anos; ao fim-de-semana tudo muda, assegura-nos Nu Naa.
Tudo muda em Koh Kret, reforça Katai. O mercado é o principal motivo: só funciona ao sábado e domingo e as multidões invadem a pequena ilha. Hoje são poucas as lojas abertas, no estreito labirinto coberto. Não faltam os famosos doces tailandeses (khanom thai) – e a Tailândia é uma nação “gulosa” – mas esses já havíamos conhecido nos “bastidores”, numa das fábricas.
Fica num dos canais, a fábrica de Khun Phaen, doces-assinatura de ascendência portuguesa – os ovos-moles são a base. Os que se vêem em mais abundância são os fios de ovos, simples ou enrolados numa espécie de cilindros-rectângulos (foi tong), alguns já em embalagens; a cozinhar estão os tong yord – no interior, um feijão de soja, coberto por gema de ovo de pato e açúcar cozinhados em calda de jasmim; mais à frente moldam-se os tong yip, os mesmos ingredientes, forma de estrela (ou flor). Este é um negócio familiar na origem e no presente. Conta-nos Khun Phaen que os pais fundaram a fábrica em 1979, ela, agora com 60 anos, sucedeu-lhes e dá emprego à família. “Somos todos primos.”
Também os vendedores de rua não dispensam sobremesas. E, embora seja um dia da semana, sem multidões, não falta comida nas ruas de Koh Kret, fritos (peixe, vegetais, frango...) por todos os lados – e à entrada de Wat Phai Lorm, já depois de termos atirado pão às carpas no lago sagrado, caímos em tentação.
O jardim, tranquilo, contrasta com o interior do bòht (sala principal do templo), desconcertante: no topo do altar, a imagem principal de Buda tem um halo azul fluorescente, aos seus pés, cofres, na parede por detrás, uma tapeçaria com cenas da natureza; a alcatifa, portas e janelas são vermelho vivo, há retábulos e budas dourados a fazer de frisos, por todo lado flores, verdadeiras e artificiais, e cestas de ofertas embrulhadas em plásticos; vitrinas para donativos divididas por signo do zodíaco. Mais ortodoxo, o templo Poramaiyikawat, mesmo ao lado do cais do ferry, é o principal da ilha e a língua Mon continua a ser usada nas orações diárias.
Há imensas placas a indicarem os caminhos: “Pottery Village”. A cerâmica Mon é o produto mais emblemático da ilha e vamos conhecê-la na fábrica de Patum Dinphaw, com ela, o marido e um dos filhos gémeos, que corta argila em cilindros e embala-a, “para conservar”, numa máquina que ele construiu. Antes, a argila era extraída na ilha, agora vem de outras províncias. “É caro encontrar boa [argila] aqui”, conta-nos a mulher, elegante, de idade indeterminada. Aprendeu a trabalhar o barro aos quatro anos, os pais já tinham a fábrica – o forno, ainda usado, tem cem anos, a técnica alguns séculos mais. Continua a fazer-se tudo à mão: o marido molda as peças, ela faz a decoração, com uma agulha. Há-as para todos os tamanhos, usos, preços e gostos.
No rio Kwai com os Mon
E, entretanto, chegamos ao “faroeste”, fronteira com a Birmânia, novamente ao encontro dos Mon na província de Kanchanaburi. Antes, passagem fugaz pela cidade homónima para olhar a história da II Guerra Mundial. A ponte sobre o rio Kwai (na verdade, há dois: o “pequeno” e o “grande” que se unem no Mae Klong), reconstruída, permanece como símbolo do que ficou conhecido como “caminho-de-ferro da morte”, construído pelos japoneses entre a Birmânia e a Tailândia à custa de trabalho forçado e prisoneiros de guerra. Dezenas de milhares de mortos, uma infame epopeia evocada na literatura e no cinema e turistas que a enxameiam – concentração de norte-americanos mais audível.
Já longe da cidade, mais um cais, Phutakien. Daqui partem os barcos, compridos e baixos, para os vários hotéis que se espalham pela selva. E é aqui que embarcamos contra a corrente: o rio largo, cor de lama, a rasgar montanhas erguidas, quase paredes cobertas de árvores – somos como brinquedos movendo-nos na grandiosidade do cenário, que ganha contornos fantasmagóricos quando a névoa o abraça. Alguns hotéis, outros barcos e desembarcamos no River Kwai Jungle Raf – um hotel flutuante. Flutua o hotel a poucos metros da margem e flutuamos nós rio abaixo: o ritual é ir até à última plataforma (rafts de bambu sobre os quais se erguem quartos e espaços comuns), atirarmo-nos (de colete salva-vidas) e ir ao sabor da corrente até à outra ponta do hotel.
Dizem-nos que estamos na selva, mas é uma selva com muita civilização. A noite traz música no ar (além da que ouvimos aqui no hotel, guitarra e voz melancólica em standards internacionais) e se não há luz (há candeeiros de querosene), há rede de telemóvel e quem deixe a noite passar de olhos postos em combates de muay thai no ecrã de tablets. Não são os hóspedes, são quem faz desta a sua vida, embalada por um rio cinematográfico e ao ritmo de uma selva (aparentemente, pelo menos) amena.
E estes são, novamente, os Mon. A aldeia está logo por detrás do arvoredo; de manhã cedo, está quase deserta. Os habitantes estão a trabalhar ou na escola: as crianças têm transporte diário para a cidade. “O dono [do hotel] é muito generoso, toma conta das crianças”, diz Katai. E dá emprego a toda a aldeia – crianças incluídas, porque à noite há dança Mon e elas são parte desse ritual, juntamente com os funcionários do hotel (de dia tratam dos hóspedes, à noite entretêm-nos).
São 30 as famílias que vivem na aldeia-camaleão – as construções, de bambu com telhados de vetiver, algumas praticamente abertas, em cima de estacas, parecem parte do ecossistema –, nós encontramos Tan Non e Sa Wat Dee. Já os havíamos visto perto do hotel: Sa Wat Dee (“bom dia”), a elefante, 46 anos, toma aí banho todas as manhãs para gáudio dos turistas (também faz passeios). Tan Non, 38 anos, é o dono, cuidá-la é o seu trabalho – “ela come o dia inteiro”. Frutas (adora papaia e toranja), vegetais, cana-de-açúcar. Damos-lhe bananas: busca-as vorazmente, quando não as há deixa-se tocar pacientemente.
Há galinhas à solta pela aldeia onde a luz do dia quase não chega, os galos cantam, cada árvore e planta tem um uso (a kasawa tem as raízes para os animais, e as folhas para os cremes; aquelas bolinhas são para o curry verde e ali reconhecemos hortelã), passam uma e outra mota. O painel solar fornece a electricidade, a máquina de purificação a água potável. Está na escola de línguas e as pessoas vêm encher bidões e garrafões. Ao fim-de-semana há aulas de mon e inglês; ao fim-de-semana vêm os turistas, com donativos (comida, livros, canetas).
A comunidade-escola
Percorremos pela última vez a nossa “estrada” de água, a província de Samut Songkhram espera-nos. Estaremos (ainda) mais próximos de Banguecoque, na comunidade Ban Bang Phlap, uma espécie de estrela do (agro)turismo tailandês. Aqui, a comunidade organizou-se em rede, proporcionando aos visitantes não só a descoberta do modo de vida rural como também a aprendizagem de várias técnicas tradicionais.
A família Sangtawan é a nossa anfitriã (tem um homestay, turismo rural); o filho, Songyot, o nosso guia num passeio de bicicleta com paragem nas oficinas. Estudou em Banguecoque, mas regressou para seguir as pisadas do pai, Somsong (o líder da village), que conhecemos em pleno coqueiral. Um dos negócios da família é o açúcar de coco – viciamo-nos nos quadrados castanhos que provaremos à noite: por agora, bebemos um coco cortado na hora e aprendemos que o açúcar é feito com a seiva das flores. Esta é depois fervida nas grandes panelas que vemos no pátio da “nossa” casa e o resultado é utilizado nos mil e um snacks vendidos por todo o país.
Há mais de “20 locais de aprendizagem”, vai desfiando Katai, enquanto pedalamos e cortamos a parede de humidade, em caminhos desertos e natureza farta. Cocos, toranjas, papaias, líchias, mangas, bananas, maçãs-rosa são alguns dos frutos mais visíveis e com Daeng Hatthakam aprendemos como são secos e cristalizados – preservados, resumindo. Não conseguimos acompanhar o rol de tudo o que passa pela sua fábrica, mas fixamo-nos nos ovos salgados, negros, parecem pedras. Negros, mas muito leves, são os frutos de carvão. É a nossa paragem seguinte, mas encontramos a oficina abandonada. Songyot faz as honras da casa, explicando que os frutos são carbonizados (ficam como esculturas) e usados como decoração e neutralizador de odores.
Udom Meekong está sentado sobre tapetes diante da sua casa, “onde vivem 10 pessoas”, informa, bem-humorado – o sorriso é constante. “Já foram mais, mandei-os embora.” Nas paredes do alpendre vários papagaios, tamanhos diversos – do topo, pende o maior. São conhecidos como “papagaios-estrela” e a sua manufactura é uma tradição que vem do século XVII. Já poucos os fazem, por isso Khun Udom tem “um anúncio para procurar aprendizes”, conta. Pega numa cana de bambu (“especial, que vai buscar à selva”) e começa a desbastá-la, com uma faca, “para a tornar mais flexível”. Depois, monta a estrutura e acrescenta a decoração ao papel branco – dobra, concentrado, o papel vermelho brilhante e corta o que parecem trevos. Faz papagaios desde os 13 anos, mas também é conhecido por encontrar facilmente camarões: quando lhe pedem (restaurantes) ou quando lhe apetece comê-los vai apanhá-los ao rio Mae Klong – o seu “pomar”.
Também há camarão, minúsculo, na bancada onde vamos preparar o jantar. Estamos de volta à casa de partida, a dos Saengtawan, e a cozinha improvisada é no pátio. A mulher de Songyos, tímida, dá as indicações: pepino, feijão verde, tomate, cogumelos, pimentos, amendoins, coco, peixe, limão, flor de banana são os ingredientes. Fazemos sopa e saladas (as malaguetas são colocadas no fundo da tigela, consoante as sensibilidades), curry de peixe e flor de banana frita.
Todas as artes tailandesas
Nova província, Samut Sakhon – e já estamos a sul de Banguecoque –, repetição de ofício, a cerâmica, nova técnica. Benjarong (Ban don Kai Dee) é o seu nome e o da village, que resiste numa zona onde se concentram grandes fábricas. Foi numa delas que Khun Urai, a actual líder da comunidade, aprendeu o ofício. Há 35 anos decidiu abrir a sua própria fábrica, Urai Benjarong, e dá trabalho a toda a família, 20 pessoas, “lucros divididos por todos no final do ano”.
Entrar na Urai Benjarong é como entrar num labirinto de edifícios coloridos, pequenos canteiros com árvores e muitas peças de porcelana por todo o lado. Tanto vemos figuras de Ganesh, em várias declinações e em vários altares, como animais e personagens que parecem saídas de desenhos animados – as peças mais clássicas estão recatadas, no interior.
O benjarong teve origem na China e foi trazido pelo rei Rama II para a Tailândia, onde incorporou temas nacionais, que Urai consulta num “livro de estilos”. Manteve, contudo, “o processo chinês”, o que significa que as peças são moldadas, vão ao forno e depois é aplicado um verniz, que as torna lisas e brilhantes. A partir daí entra a decoração: primeiro, os motivos são desenhados – numa sala à parte encontramos Khun Nid nesta tarefa –, depois pintam-se – em torno de uma mesa grande, num alpendre, são várias as pintoras. Após este processo vão novamente ao forno e o resultado pode ser visto em dois andares de loja, em pratos e animais, jarras e jarrões, taças, chávenas e potes – quem quiser experimentar, tem workshops regulares.
A cerâmica é apenas um dos 32 ofícios-artes que florescem na Fundação para a Promoção de Ocupação Suplementar e Técnicas Relacionadas (SUPPORT no seu acrónimo em inglês), projecto maior da rainha Sirikit. Foi estabelecida em 1976 para ajudar as famílias da Tailândia rural a melhorarem a sua vida – dá formação, totalmente gratuita.
Em Bang Sai (já na província de Ayutthaya, 30 quilómetros a norte de Banguecoque), nas margens do rio Chao Phraya, está o maior dos centros, um enorme complexo entre relvados imensos, onde sobressai o museu-loja, edifício em estilo tradicional tailandês que alberga, no rés-do-chão, a loja – uma amostra de todo o artesanato produzido no centro, ou seja, em todo o país e a preços mais baratos do que o habitual – e, nos dois andares superiores, um museu.
Mas o complexo proporciona aos visitantes contacto directo com as artes que vão desde a prata ou vidro à tecelagem de seda e seus bordados, do já conhecido batik ao mobiliário, cestaria, flores artificiais, metalurgia. Caminhamos pelas oficinas, grandes, que se alinham como se de um bairro se tratasse, para encontramos artistas a fazer máscaras Khon ou vitrais, “algo novo aqui na Tailândia, mas, pensou o professor, semelhante ao batik”, conta Bambao (Anchana Bangpiendee), a relações públicas – aqui, são usados para biombos e cadeiras, candeeiros e quadros, o que o artista quiser, “há liberdade de criação até porque os estudantes têm de apresentar um projecto final”.
A Tailândia rural e artesanal desagua aqui, e com ela uma aldeia que são todas as aldeias do país – as tradicionais casas de madeira representam estilos arquitectónicos de várias regiões. Não podemos visitá-la porque decorre um casamento – saímos a pensar que esta é uma espécie de “Tailândia dos Pequeninos”, mas viva e a ensinar o passado para ganhar o futuro. Se calhar é uma metáfora para esta viagem.
A Fugas viajou a convite da Autoridade de Turismo da Tailândia