Bairro da Jamaica: sem informação, não há (boas) políticas públicas!
Sem informação detalhada e recente, e bastante vontade política, a vida nos outros bairros da Jamaica espalhados pelo país vai continuar a criar sentimentos de impotência e desespero
A região de Lisboa foi esta semana palco de confrontos entre a polícia e os moradores do Bairro da Jamaica. Para que fique claro, os agentes de polícia são muitas vezes vítimas de agressões e nem todos os habitantes dos bairros degradados são exemplares. Mas a polícia, enquanto representante e garante do estado de direito, não pode reagir de forma desproporcionada e agredir cidadãos aparentemente indefesos como Aurora, Fernando e Julieta Coxi. Há um ano, o Conselho da Europa apontou o dedo a práticas inaceitáveis da PSP, consistindo em “estaladas, socos, pontapés no corpo e cabeça e agressões com bastão”, das quais as principais vítimas eram as pessoas de origem africana. Parece que Portugal fez orelhas moucas às recomendações do Comité Anti-tortura do Conselho da Europa. Acontece que a violência policial é uma gota que faz transbordar um oceano de amarguras. É dessas que quero falar hoje.
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A região de Lisboa foi esta semana palco de confrontos entre a polícia e os moradores do Bairro da Jamaica. Para que fique claro, os agentes de polícia são muitas vezes vítimas de agressões e nem todos os habitantes dos bairros degradados são exemplares. Mas a polícia, enquanto representante e garante do estado de direito, não pode reagir de forma desproporcionada e agredir cidadãos aparentemente indefesos como Aurora, Fernando e Julieta Coxi. Há um ano, o Conselho da Europa apontou o dedo a práticas inaceitáveis da PSP, consistindo em “estaladas, socos, pontapés no corpo e cabeça e agressões com bastão”, das quais as principais vítimas eram as pessoas de origem africana. Parece que Portugal fez orelhas moucas às recomendações do Comité Anti-tortura do Conselho da Europa. Acontece que a violência policial é uma gota que faz transbordar um oceano de amarguras. É dessas que quero falar hoje.
No site da Câmara Municipal do Seixal encontra-se o “Diagnóstico Social do Seixal”, de 2016. O capítulo 3 é dedicado à “Estrutura Habitacional”; na página 56 surge o Bairro do Vale de Chícharos, na Freguesia da Amora, conhecido por Bairro da Jamaica. Aí se explica que este bairro, de 9 lotes e 4 casas térreas, inacabados, foi a partir de finais dos anos 80 ocupado ilegalmente, inicialmente por famílias portuguesas e posteriormente por famílias oriundas de PALOP, devido à “atratividade da zona, por se tratar de espaços habitáveis gratuitos, com fortes redes de solidariedade e vizinhanças presentes e com boas vias de acesso.” Em 2015, a EDP recusou fazer obras para levar eletricidade a estes lares devido às condições de habitabilidade e insalubridade. O relatório menciona ainda riscos graves para a segurança, inexistência de água da rede pública, esgotos e arruamentos, focos de criminalidade, ambiente degradado e fenómenos de exclusão social.
Ainda segundo o relatório, em 2011, a taxa de desemprego no Bairro da Jamaica era de 28,66% e mais de metade da população não tinha o 9.º ano de escolaridade. A taxa de desemprego no concelho do Seixal era de 14.08%; dentro deste, a freguesia com maior desemprego era a de Amora, com 15.81%; mas no bairro da Jamaica havia quase o dobro do desemprego! No site do INE, vemos que Amora tinha 1.35% de edifícios muito degradados e o Seixal 0.94%. Embora o INE não tenha dados ao nível do bairro, esta é fácil de adivinhar para o Bairro da Jamaica: 100%. Ou seja: dentro de uma freguesia pobre de um dos concelhos mais desfavorecidos da área metropolitana, existe uma micro-ilha de exclusão chamada Vale de Chícharos.
As desigualdades urbanas são um desafio em todos os países. Um dos meus mapas favoritos de Londres é o “Lives on the Line” que mostra as diferenças de esperança de vida através do mapa do metro. No centro da cidade, em Hyde Park, vive-se até aos 87 anos; em Heathrow, perto do aeroporto, até aos 79. No Bairro da Jamaica não sei, mas parece que na freguesia da Amora se morria mais cedo, pelo menos à data do censos de 2011: de todas as pessoas com mais de 65 anos, apenas cerca de um terço tinham mais de 75 anos, quando em Lisboa esse valor era de mais de 50% e no Seixal de cerca de 40%.
Se Portugal não está sozinho na segregação do espaço urbano, já a falta de informação detalhada é um problema maior por estes lados. No INE, o maior detalhe geográfico que conseguimos é ao nível da freguesia, e só pelos censos, de 10 em 10 anos. Ora a realidade “freguesia” não conta a história toda, como se vê pela comparação de Amora com o Bairro da Jamaica. Também continuamos com a aberrante proibição de recolha de dados étnicos, o que nos tem permitido assobiar para o lado naquela que é, provavelmente, uma das dimensões de desigualdade mais gritantes da sociedade portuguesa. Nos Estados Unidos, por exemplo, o site http://www.city-data.com/indexes/neighborhoods/ tem informação recente, para cada bairro, sobre, entre outras coisas: rendimento, composição étnica, desemprego, educação, preço de casas, tempos médios de deslocação casa-trabalho, idades de residentes, tipos de família, criminalidade.
Melhor informação é fundamental para desenhar e testar políticas públicas localizadas. Nos EUA há as State Enterprise Zones, as Federal Empowerment Zones e as Federal Enterprise Communities e em França as Zones Franches Urbaines, que oferecem benefícios fiscais a empresas que se localizam em zonas desfavorecidas. Em Itália, como as crianças imigrantes de certos bairros escolhem mais vezes o ensino profissional, foi criado um programa de tutoria com o objetivo de diminuir as desigualdades no ensino. Às vezes os resultados destas políticas ficam aquém do esperado, ou funcionam apenas para determinados sub-grupos da população que pretendem ajudar. Mas uma coisa é certa: sem informação detalhada e recente, e bastante vontade política, a vida nos outros bairros da Jamaica espalhados pelo país vai continuar a criar sentimentos de impotência e desespero, que podem acabar em batalha campal na Avenida da Liberdade.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico