Luca, pés na prancha, mãos na massa
Tem um pequeno e discreto restaurante em Lisboa e acaba de abrir um segundo em Almada. Luca Salvadori quer mostrar como a complexa simplicidade da cozinha do seu país joga tão bem com os produtos portugueses.
Foi o râguebi que o trouxe para Portugal. Luca Salvadori estava com 30 anos e no meio de uma crise na sua vida. “Queria mudar alguma coisa. Felizmente, uma equipa de râguebi de Lisboa chamou-me para jogar e agarrei a oportunidade”, conta este italiano do Piemonte, alto, olhos grandes, cabelo encaracolado.
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Foi o râguebi que o trouxe para Portugal. Luca Salvadori estava com 30 anos e no meio de uma crise na sua vida. “Queria mudar alguma coisa. Felizmente, uma equipa de râguebi de Lisboa chamou-me para jogar e agarrei a oportunidade”, conta este italiano do Piemonte, alto, olhos grandes, cabelo encaracolado.
Viu no convite uma possibilidade de “ter seis meses de férias pagas”, ganhando algum dinheiro para fazer exactamente aquilo de que gosta. Foi em 2010. Hoje, nove anos depois, tem dois restaurantes, o Il Covo, em Lisboa, e o La Cantina, que acaba de abrir em Almada. A ambição? Ser o embaixador da “verdadeira comida italiana” em Portugal. O que significa, entre outras coisas, fazer massas de raiz na cozinha do Il Covo.
Mas já lá iremos, aos segredos das massas italianas. Primeiro vamos conhecer um pouco mais da história deste homem que, além de tudo isto, é um apaixonado por surf, o que o faz levantar bem cedo para ir até à praia apanhar umas ondas – e, de caminho, ver que peixe os pescadores trazem nesse dia.
A equipa de râguebi era a da Faculdade de Agronomia que, por acaso, tinha na Tapada da Ajuda um restaurante, na época temporariamente fechado. Luca, que desde 1999 trabalhava na restauração em Itália, ofereceu-se para gerir o espaço e aí conheceu um italiano que o desafiou a ir com ele iniciar outro projecto. Foi, ganharam o prémio de melhor restaurante italiano, mas acabaram por perceber que tinham perspectivas diferentes. Luca saiu e, passados seis meses, estava a abrir o Il Covo, um pequeno espaço numa rua escondida de Lisboa.
Aí – e agora no La Cantina, um projecto com o mesmo grau de exigência mas preços mais acessíveis – faz a cozinha italiana “da maneira que deve ser feita, sem ter que chegar a compromissos para agradar aos clientes mas trabalhando para os fazer descobrir os sabores como devem ser”.
Se no Il Covo usa a matéria-prima mais cara, das trufas de Alba ao lavagante (com carta de vinhos, portugueses e italianos, a condizer), e tem até uma selecção de 12 tipos de azeite, o que permite que “cada prato tenha um azeite próprio”, no La Cantina, em vez de ter uma massa com ostras, pode apresentá-la com amêijoas, em vez de trufa branca pode usar abóbora e em vez de servir lombo, pode optar pela vazia. “Acredito que o que é importante é ser claro com os clientes e não tentar enganá-los vendendo uma coisa que não é.”
A cozinha italiana, explica, “é muito variada porque cada região adapta os produtos locais a uma técnica de cozinha nacional”. Isto significa que um “restaurante do Norte vai anunciar que tem boa carne, às vezes bom peixe; um restaurante da Toscana diz que tem bons cogumelos e boa caça; o Sul tem um sol muito forte, os produtos são intensos, há um tomate muito saboroso e peixe, porque há mais costa do que no Norte”.
Cozinhando em Portugal, segue o mesmo princípio, escolhendo os melhores ingredientes para preparar com técnicas e receitas italianas. “Acho que os peixes portugueses são melhores do que os que temos em Itália, porque as águas são mais frias.” Mas se um dia não encontra o peixe como quer, prefere não o servir e procurar uma alternativa. Deixa também uma crítica à forma como os portugueses tratam o peixe: “A vossa moda é comer na grelha, escalado, mas toda a parte boa, quando é colocada na grelha, seca. Para mim, o peixe deve saber a peixe, não deve ser seco, nem saber a azeite ou a alho.”
Também os queijos portugueses o encantam. “Não faz sentido, para mim, fazer um risotto de quatro queijos importando queijos italianos quando em Portugal temos queijos tão fabulosos como os da Ilha, de Azeitão, da Serra. O que faço é o arroz italiano acabado com queijos portugueses.”
Tanto no Il Covo como o La Cantina, a ementa muda diariamente, conforme os produtos frescos que Luca tem à disposição. “Muitos dos pratos que faço são do Piemonte ou revisitações de pratos dessa região. Mas gosto de propor outros que gostei de experimentar. Por exemplo, agora estou a fazer uma revisitação do bacalhau à lagareiro mas feito com massa à maneira italiana”, explica. “O sabor é o mesmo do bacalhau, só que é proposto de outra forma, em raviolli recheados com bacalhau fresco e um molho simples com alho e azeite.”
No dia em que visitámos o La Cantina havia tagliatelli fresca com molho de javali, um spaghetti alle bruscio, com alho, alecrim e piripíri, outro à bolonhesa (“faço a receita de Bolonha modificando um bocadinho, lá usam 40% de carne de porco e 60% de vaca, eu uso só carne de vaca como em Turim, e a carne é cortada com uma faca e não picada”), outro carbonara, “um dos nossos clássicos, feito não com bacon mas com a gordura da papada do porco, que tem um sabor mais intenso”. Luca interrompe a explicação dos pratos para contar a história da origem da carbonara: “É um prato pobre, feito com o que sobrava do porco e era o que faziam os carbonários, os revolucionários do século XIX em Itália que, sendo um movimento proibido, iam para grutas e cozinhavam com as coisas mais baratas: massa, um bocadinho de porco, de queijo e de ovo”.
A carta inclui ainda uma lasanha com salsicha de Bra, feita apenas com carne de vaca, bucattini a la matriciana, “uma das massas típicas do Centro de Itália, com muito power” e uma massa a la norma, “típica da Sicília e a preferida de muitos velhotes sicilianos” feita com beringelas, e um molho de alcaparras e anchovas.
Aberto o apetite, sentamo-nos à mesa para provar algumas destas massas e ainda a mais básica de todas: spaghetti passado pelo interior de uma forma vazia de parmesão, a massa caseira, quente, a absorver todo o sabor do queijo. Perfeito na sua simplicidade – como só a cozinha italiana consegue ser.
É pasta e basta?
Todos os dias, no Il Covo, a equipa de Luca Salvadori prepara massa fresca. Parece uma coisa simples, mas tem muito saber por trás. “Cada massa tem uma receita própria”, sublinha o chef italiano. “A percentagem de farinha com ovo vai mudar em cada uma, algumas não levam ovo, e há uma, que servimos com trufas, que leva três vezes a dose de ovo, porque gosto de deixar o paladar mais gorduroso.”
Todos os dias é necessário corrigir pequenas coisas. “A receita original da massa é de um quilo de farinha para dez ovos, mas pode haver um dia em que os ovos são mais velhos e só vão ser precisos nove, mas se noutro dia forem mais frescos temos que usar 11.” Tudo depende da sensibilidade de quem trabalha a massa – e da experiência, claro, sendo que Luca começou aos quatro anos, a ajudar a avó.
Um dos aspectos mais importantes na confecção de uma receita é saber quando está no ponto, e isso só pode ser feito por quem conhece bem o prato original. Daí a equipa de Luca ser composta por um grande número de italianos (nove num total de 15 pessoas para os dois restaurantes).
Luca convida-nos a passar pelo Il Covo no início de tarde para o vermos fazer a massa. Começa por trabalhar a farinha com os ovos, incorporando lentamente até criar uma massa consistente, depois moldada numa bola e colocada a repousar. É a partir dessa massa, depois de esticada, que vai retirar os diferentes formatos de pasta de que precisa, dos raviolli aos tagliatelli. Foi assim que aprendeu a fazer com a avó e é assim que, tantas décadas mais tarde, continua a fazer hoje em Lisboa.