Uma biografia "independente" que levou 60 anos a chegar

Foram precisos mais de 60 anos para uma obra que começou a ser falada logo após a morte de Calouste Gulbenkian chegasse às livrarias. Rui Vilar, que apoiou o projecto, explica porquê.

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Retrato pintado por Charles Joseph Watelet em 1912, o único que Gulbenkian encomendou de si próprio

“Esta não é uma biografia autorizada. A fundação não tinha esse poder sozinha, nem foi a sua intenção”, explica-nos Rui Vilar, responsável enquanto presidente da Fundação Gulbenkian à época pelo apoio à obra O Homem Mais Rico do Mundo, As Muitas Vidas de Calouste Gulbenkian, com autoria do historiador inglês Jonathan Conlin, cujo lançamento estava marcado para esta quinta-feira em Lisboa. 

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“Esta não é uma biografia autorizada. A fundação não tinha esse poder sozinha, nem foi a sua intenção”, explica-nos Rui Vilar, responsável enquanto presidente da Fundação Gulbenkian à época pelo apoio à obra O Homem Mais Rico do Mundo, As Muitas Vidas de Calouste Gulbenkian, com autoria do historiador inglês Jonathan Conlin, cujo lançamento estava marcado para esta quinta-feira em Lisboa. 

Foram precisos mais de 60 anos para uma obra que começou logo a ser falada após a morte de Calouste Gulbenkian chegasse às livrarias. “A história da biografia começa logo no início da fundação. Se se ler o primeiro relatório da Fundação Gulbenkian fala-se da necessidade de uma biografia", explica Rui Vilar, actualmente administrador não executivo da fundação, mostrando-nos o excerto escrito pelo primeiro presidente da Gulbenkian, José de Azeredo Perdigão, sobre os anos que vão de 1956 a 1959. Neste relatório, que Jonathan Conlin também cita na entrevista que dá ao Ípsilon, lê-se: “Constitui por isso preocupação e desejo dos seus executores testamentários e do conselho de administração da fundação promover a elaboração de uma biografia com o nível e a dignidade que uma obra de tal natureza deve ter para não diminuir ou até ofender a memória do biografado.” 

Segundo Rui Vilar, a razão da demora ficou a dever-se à família “não ter sido muito favorável à biografia”, especialmente o descendente directo de Gulbenkian, o neto Mikhael Essayan, que morreu em 2012. “O neto tinha convivido com ele. A personalidade de Calouste Gulbenkian e as suas relações familiares, como se vê pelo livro, eram complexas. Penso que havia aí sentimentos contraditórios. As coisas mudaram com o bisneto, que é o actual representante da família e administrador da fundação, que não conviveu com o Sr. Gulbenkian. Quando discutimos o problema a seguir ao cinquentenário da criação da fundação, Martin Essayan mostrou toda a abertura e interesse.”

A escolha de Jonathan Conlin e da sua equipa da Universidade de Southampton surgiu naturalmente depois de ele ter estudado os arquivos para fazer um artigo sobre a filantropia de Gulbenkian, publicado em 2010 na revista Análise Social. “A biografia é um trabalho académico e a fundação respeitou integralmente a sua independência e rigor. Abrimos todos os arquivos e não houve nenhuma restrição.”

O trabalho de Jonathan Conlin foi acompanhado por um painel de supervisão constituída por outros três académicos: a historiadora portuguesa Fernanda Rollo, da Universidade Nova de Lisboa, Richard Roberts, do King’s College, especialista em história das instituições financeiras, e Joost Jonker, da Universidade de Amesterdão, que escreveu a história da Royal Dutch Shell. “O comité foi decidido de comum acordo. Nós estávamos a financiar e tinha que haver um acompanhamento do progresso do trabalho.”

Rui Vilar, tal Rui Esgaio, secretário-geral da fundação, foi lendo a biografia à medida que os capítulos ficavam prontos. Fê-lo enquanto presidente da fundação, tarefa que os seus sucessores também herdaram. Não se lembra dos comentários que terá feito, mas sublinha que esta é mais uma biografia sobre os negócios do petróleo. “Uma coisa que me surpreendeu é que não há nenhuma referência ao livro do Dr. Perdigão sobre o Gulbenkian coleccionador, não consta aliás da bibliografia seleccionada.”

Sobre o retrato não muito favorável que a biografia faz de Azeredo Perdigão, que terá imposto o modelo de fundação juntamente com o regime autoritário de António de Oliveira Salazar, presidente do conselho do Estado Novo, Rui Vilar lembra que os três executores testamentários, Cyril Radcliffe, Kevork Essayan e o próprio Perdigão, tinham personalidades muito diferentes. “Lord Radcliffe renunciou, o genro mudou de posição e apoiou o Dr. Perdigão, portanto Perdigão emergiu como a pessoa que podia cumprir o desígnio da constituição da fundação.”

Para Rui Vilar, se Radcliffe desiste porque não aguenta o embate com Perdigão e o regime de Salazar, isso significa que não cumpriu o dever de trustee. A ligação de Perdigão a Salazar também não o surpreende por causa do contexto político da ditadura: “Viver em Portugal em 1955 e criar uma instituição com o impacto da Fundação Gulbenkian não permitia passar ao lado do presidente do conselho. Era totalmente irrealista. Aliás, se alguma coisa nos podia surpreender era que Salazar deixasse constituir a fundação, porque esta iria ser um elemento de perturbação do regime.”

No final da biografia, Conlin sublinha que a vontade de Gulbenkian teria sido criar uma fundação para a humanidade, exprimindo dúvidas sobre decisões tomadas pelos trustees, nomeadamente sobre a distribuição da acção da fundação em Portugal e no estrangeiro. Rui Vilar lembra que Gulbenkian não deixou escrito exactamente o que queria. “Sei, pelos testemunhos que ouvi, que teria havido uma indicação a Lord Radcliffe de que era uma fundação para toda a humanidade. O tema da repartição entre Portugal e o estrangeiro foi questão amplamente debatida no período anterior à aprovação dos estatutos da fundação. Penso que a primeira oferta de Radcliffe foi 15% para Portugal. Depois chegaram a 30%. O Governo queria 35% ou 40%. Isso foi um tema discutido, mas não ficou estabelecido. No testamento, não está nada escrito, o que está no testamento é que a fundação exercerá a sua acção em Portugal e em qualquer outro país.”

Rui Vilar preocupou-se com esta distribuição e os números publicados mostram que o desequilíbrio atingiu números muito baixos a favor de Portugal, principalmente depois da nacionalização da indústria petrolífera no Iraque em 1973 e do 25 de Abril de 1974. “O Dr. Perdigão também devia ter conhecimento de alguma indicação do Sr. Gulbenkian porque nos primeiros anos a repartição entre Portugal e fora de Portugal foi 50-50. Depois no meu tempo, a partir de 2005, começou a haver uma inflexão e hoje os números são 70% para Portugal e 30% para o estrangeiro.”

Rui Vilar está satisfeito com o resultado, porque era importante que depois de tantas biografias houvesse um primeiro trabalho académico. Agora, espera que apareçam outras. “Era interessante que esta biografia estimulasse outros investigadores para aprofundarem outros aspectos.” Sobre o que a biografia pode ensinar à instituição, Rui Vilar afirma que “a melhor maneira de honrar a memória do fundador é sermos uma fundação virada para o futuro e capaz de antecipá-lo.”