Pane, amore e Lenny Bruce
O que me passa pela cabeça são as ausências. Isto é, o espaço vazio que deixam e que são ocupadas pelas imagens, as palavras e as músicas. Proponho não encarar as ausências que nos acompanham como um espaço vazio mas como um espaço aberto para serem habitadas pelos nossos desejos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O que me passa pela cabeça são as ausências. Isto é, o espaço vazio que deixam e que são ocupadas pelas imagens, as palavras e as músicas. Proponho não encarar as ausências que nos acompanham como um espaço vazio mas como um espaço aberto para serem habitadas pelos nossos desejos.
Falando de desejo: a minha lua-de-mel levou-me a Bolonha e ocupei a ausência da selecção italiana do campeonato do mundo com enormes doses de amor, ragù e filmes no Cinema Ritrovato. Uma descoberta: Luciano Emmer e os retratos de ficção, da Itália e Europa dos anos 50, a rebentar de vida — tão comovente, despretensiosa e verdadeira que parece ter deixado uma ausência no cinema de hoje. Em Domenica d’Agosto (1950), as classes sociais fogem do calor de Roma para se atirarem ao mar de Ostia. Dois jovens furam a barreira que separa a areia dos pobres da areia dos ricos e apaixonam-se à beira-mar, fingindo, como jovens actores, que têm hábitos e fortunas, crendo que o outro é aristocrata. Na cidade, um casal de namorados fica para trás e descobre que o seu amor é abalado pela realidade: a gravidez dela provoca o despedimento da casa onde trabalha, como empregada, e a incerteza provocada pela ausência de dinheiro, no polícia sinaleiro, fá-lo perder a capacidade de orientar a vida à sua volta. É Verão e tudo nos diz, nestes rostos, que a vida continuará quando o calor se fizer sentir pela sua ausência.
Em Lisboa, ainda com os pés no mar que juntou essas pessoas, encontro Robert Redford e O Cavalheiro com Arma (2018), filme habitado por todos aqueles que fez e um gesto recorrente: habitar os espaços vazios e secretos de um imenso país como uma figura fugidia que responde ao desejo de conhecer as luzes e sombras do sonho americano. Redford entendeu os mistérios que o cinema convida a ocupar, fazendo-nos olhar para as imagens e habitarmos o seu mistério para deixar-nos mover por aquilo com que responde aos nossos desejos.
E chego, por aí, a outra figura desaparecida, uma voz sem medo de romper com os nossos segredos (“Lenny Bruce is not afraid”). Lenny Bruce fartou-se de quem o queria calar e deixou-nos com uma ausência prematura aos 40 anos. O mundo tinha chamado o comediante de “ofensivo” e recusou-se a ver, na arte suprema da sua stand-up comedy, como todos nós éramos obscenos. Lenny sabia, também ele, como encarar o espaço ausente das nossas vidas, aquele que não queríamos ver, à nossa frente, para encararmos a nossa humanidade: “If you think the words ‘to come’ really make you feel uncomfortable, if you think I’m rank for saying it to you, (…) you probably can’t come. And then you’re of no use, because that’s the purpose of life, to re-create it.” Vou ao encontro dessa vida e da sua presença na ficção: olhos na tela ou ouvidos nos auscultadores, onde a solidão se sente acompanhada.