O excremento do fascismo
O que começamos a entender neste muito distópico início de 2019 é que o fascismo não chega a Portugal com o PNR ou as suas imitações de última hora a conquistarem eleitorado; ele chega com a indiferença generalizada perante o espectáculo da direita institucional servir-se dos PNRs como cães de fila.
Para quem acha que ele só chega de botas cardadas, ou de outras indumentárias reconhecíveis, vale lembrar que em menos de um mês já tivemos:
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Para quem acha que ele só chega de botas cardadas, ou de outras indumentárias reconhecíveis, vale lembrar que em menos de um mês já tivemos:
1. Um Presidente que, falando em nome do país, chamou "irmão" a um fascista que foi eleito no Brasil prometendo levar a violência a quem não coma e cale e que, servindo os interesses financeiros internacionais, nem assim conseguiu impressionar Davos com a sua presença há dois dias. Pouco importa que fosse o nosso Presidente o único representante de um país da UE presente, para além de um ou dois autocratas apostados em destruir a UE que julgamos ter, que não a UE que já temos, e que é cada vez mais deles. E pouco importa que, se a Justiça brasileira sobreviver, o fascista brasileiro e a sua camarilha se encontrem a breve trecho a braços com ela. A bem da verdade, a violência foi prometida, sobretudo, a quem raramente come e mesmo assim não cala.
2. Um nazi ser exibido em "prime time" numa TV como preso de consciência a quem devemos a Grã-Cruz da Ordem do Infante. Só faltou a assistência em estúdio ir em fila passar-lhe a mão na careca, a ver se fazia faísca. Esse foi o limite não ultrapassado no programa da TVI, talvez porque a libido fascista — sentir a lâmina a penetrar a carne alheia enquanto se contempla o medo estampado no rosto — é demasiado irresistível para senhores impressionáveis. Seja como for, o episódio cumpriu a função estratégica do dividir para reinar, nas audiências como no comentariado.
3. Perante imagens de uma indescritível violência em que vemos agentes policiais trajados a preceito (incluindo máscaras), a bater em mulheres e homens indefesos num bairro da periferia de Lisboa que os portugueses costumam fazer de conta que não existe, a direcção nacional da PSP diz que usou apenas a força "estritamente necessária". Está por comprovar que existiram pedras arremessadas, mas mesmo se existiram, ninguém se pergunta: aquela intervenção está coberta pela lei num estado de direito? Como é possível respeitar as forças da autoridade que não perdem uma oportunidade para minar os alicerces dessa autoridade, a confiança da população à qual existem para servir?
4. Em reacção a esta violência inqualificável, uma manifestação espontânea teve lugar no centro de Lisboa. Primeiro erro dos manifestantes: em Portugal, o centro das cidades é para os brancos; os negros só estão de passagem, a caminho das casas que vão limpar ou dos restaurantes ou obras onde vão trabalhar. Negros do zoo falarem alto no centro de Lisboa?! Balas de borracha é mas é pouco! Pouco importa se não eram só negros, nem do Jamaica, e nenhum deles reconheceria o zoo como casa. Os meios de comunicação social, exceptuando um ou dois jornais, e tardiamente, não quiseram esclarecer quem eram.
5. Em consequência, nenhuma equipa de filmagem se disponibilizou a filmar os acontecimentos em directo, apesar de, duas semanas antes, termos sido convencidos de que o que há mais em Portugal é câmaras de televisão ociosas, frustradas por não conseguirem materializar os malditos coletes amarelos que teimam em preferir a França (como, secretamente, as nossas televisões). Mas nos dias seguintes aos eventos da Avenida da Liberdade, o pleno foi feito com figuras de estado, representantes dos partidos, das forças de segurança, não tendo, porém, uma estação como a SIC pensado que ficaria bem entrevistar ao menos um habitante do bairro na origem de todo o descalabro. Entre as balas de borracha e o descaso da imprensa, que se viu limitada aos vídeos caseiros disponibilizados por testemunhas, que mensagem foi veiculada sobre o valor que a sociedade portuguesa atribui à sua população negra?
6. A expressão "bosta da bófia", veiculada sem escrúpulos de contextualização pelo mais antigo jornal nacional, assim tristemente convertido em descarga de autoclismo, dá origem a um ato de persignação nacional, e dois partidos desalojados da agenda da austeridade com que puniram o povo português durante anos a fio exigem agora cabeças — o cheiro a sangue inebria até as pessoas de bem. Entretanto, as milícias nazis mobilizam-se (é ver a informação que circula nas redes sociais), e gostaríamos de saber se esses partidos estão também preparados para assumir em público a responsabilidade por qualquer ato de violência que eventualmente tenha lugar em consequência da sua incitação. Ou se as televisões que agora fazem o serviço a esses emissários do cinismo e da desfaçatez vão ter câmaras disponíveis para filmar a cara de pau da hipocrisia.
7. A expressão “bosta da bófia”, no sentido usado na publicação polémica, só incomoda a quem nunca teve que comer aquilo a que a expressão alude. Ajuda à indignação que se gerou que esse presente seja reservado quase em exclusivo a quem vive nas bostas de bairros que reservamos a quem nos limpa a casa ou constrói as casas onde, surprise surprise, poucos de nós irão viver. São casas reservadas para fundos imobiliários, ou para quem votou no fascista brasileiro, ou palácios como o do auto-intitulado marajá do Bairro Alto, que achou por bem (com um fechar de olhos municipal) anexar o espaço público cuja renovação todos pagámos, e que faz do Adamastor vedado a sua varanda particular.
Mas esta paixão assolapada que os portugueses descobriram agora que têm com a sua polícia, a melhor do mundo não obstante os relatórios internacionais que provam o contrário, só durará até à próxima multa no pára-brisas. Porque não há nada mais sagrado em Portugal do que um automóvel, e os portugueses reservam uma língua afiada quando se trata de descrever a polícia que multa objectos sagrados. Bosta, nesse momento, vai ser apenas um vernáculo anacrónico, até coro de pensar nas possibilidades conhecidas, e que decerto a polícia como instituição não merece. Desde logo não deveriam ser as paixões a pautar a relação de uma sociedade com as forças da ordem, mas sim a confiança mútua, baseada na observância da lei.
Não podemos admitir um estado de excepção nos bairros guetizados, onde a existência das pessoas já se processa de forma tão tristemente excepcional, e na senda da exclusão. E se, de facto, respeitamos a instituição da polícia, não podemos admitir que forças políticas com responsabilidade histórica na democracia portuguesa dela se sirvam como arma de arremesso para manter o status quo e, de caminho, derrubar um ou dois adversários políticos. Todos queremos estar do lado da polícia, mas a prioridade neste momento é a vida das pessoas, das que foram agredidas injustificadamente, e das que estão a receber ameaças de morte.
8. Perante tudo isto, o Presidente das peculiares irmandades afirma que "é errada uma visão que generalize casos específicos", sendo que a especificidade morre precisamente no arco que termina nestas palavras. Dizer que o racismo se manifesta de forma sistémica, e que a polícia é parte desse problema, não é a mesma coisa do que dizer que todos os polícias são racistas ou que todos os portugueses são racistas.
É isso o que as associações anti-racistas vêm dizendo há muito tempo, num esforço pedagógico admirável mas que muitos preferem ignorar, e que até agora não tem tido grande efeito junto das instituições do Estado que deveriam garantir que episódios como o de domingo no Jamaica, de segunda-feira no centro de Lisboa, ou de há duas semanas, no Cacém, não voltem a repetir-se.
Leio na revista Sábado que a PSP vai impedir os seus agentes de se envolverem em discurso de ódio nas redes sociais, e felicito o Comando por essa decisão. É verdade que nada impede os agentes com essas inclinações de assumirem perfis falsos, e que não será coisa fácil de fiscalizar, mas a decisão é correcta e constitui um importante primeiro passo no esforço que tem de ser empreendido para que a confiança entre a Polícia e a população se restabeleça.
Vai ser preciso também resolver o problema, conhecido, da infiltração das forças policiais pelos movimentos de extrema-direita. Mas o que começamos a entender neste muito distópico início de 2019 é que o fascismo não chega a Portugal com o PNR ou as suas imitações de última hora a conquistarem eleitorado; ele chega com a indiferença generalizada perante o espectáculo da direita institucional servir-se dos PNR como cães de fila, e com a arregimentação da opinião pública, eficaz ao ponto em que ver homens fardados a deixarem inconscientes no chão mulheres indefesas é menos revoltante do que o exercício da liberdade de expressão por parte de quem, até agora, a sociedade portuguesa não soube ainda incluir.
Só tem três semanas ainda, o novo ano? Quem diria!