Actuação da polícia nos bairros volta a dividir opiniões
A PSP foi filmada numa intervenção polémica no bairro da Jamaica, Seixal. Um dia depois dispara balas de borracha em plena Avenida da Liberdade para "dispersar manifestantes", mas houve quem tivesse sido atingido. Está a agir correctamente? Ou a recorrer ao uso excessivo da força?
Desde domingo que dois acontecimentos colocaram a PSP no centro das notícias: a intervenção de agentes da Esquadra de Cruz de Pau durante essa manhã no bairro da Jamaica, Seixal, e o disparo de balas de borracha em plena Avenida da Liberdade, em Lisboa.
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Desde domingo que dois acontecimentos colocaram a PSP no centro das notícias: a intervenção de agentes da Esquadra de Cruz de Pau durante essa manhã no bairro da Jamaica, Seixal, e o disparo de balas de borracha em plena Avenida da Liberdade, em Lisboa.
Nas redes sociais e nos media as opiniões sobre a actuação da PSP provocaram polémica, com acusações de uso excessivo da força durante a actuação no Jamaica. E como se explica o recurso a balas de borracha em pleno centro de Lisboa, à hora de ponta? Está a PSP a cumprir as suas funções ou a extravasá-las?
Recordando: parte da operação no Jamaica foi filmada num vídeo que se tornou viral e mostrava os agentes e moradores em confronto, com uma narradora a acusar a polícia de racismo. Um agente deu dois socos e uma joelhada a Fernando Coxi, 63 anos; a sua mulher, Julieta Joia, 52 anos, é empurrada por outro. A família acusou os polícias de uso excessivo e injustificado de força. O Ministério Público (MP) já abriu inquérito, a PSP também está a investigar e a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) acompanha o processo da PSP.
Mobilizados pela indignação contra o sucedido, centenas de jovens que se organizaram espontaneamente em 24h protestaram na segunda-feira em frente ao Ministério da Administração Interna no Terreiro do Paço – a PSP estimou 300. Na Avenida da Liberdade, por onde seguiram, os ânimos aqueceram. A PSP acusou-os de atirar pedras; manifestantes queixaram-se da acção da polícia. “Não sei, não vi como fui atingido. Estávamos a subir, afastaram-se todos. Só senti a bala a acertar", contou ao PÚBLICO Júnior Dias, 18 anos, que tinha um ferimento no centro da testa.
Entretanto, na noite de segunda-feira foram incendiados quatro carros na Póvoa de Santo Adrião e em Odivelas, 11 caixotes do lixo foram destruídos e outras cinco viaturas danificadas em Loures num ataque que a PSP classificou em comunicado de “vandalismo”, juntando um outro episódio que ocorreu na madrugada de terça-feira na esquadra da Bela Vista, em Setúbal, atingida com três cocktails molotov – a polícia sublinhou, porém, que estes últimos incidentes não estavam ligados à manifestação.
“Podemos discutir quem atirou a primeira pedra mas não devemos analisar as forças de segurança a esse nível, elas têm uma responsabilidade muito elevada”, diz a socióloga Silvia Rodríguez Maeso, coordenadora do projecto O combate ao racismo em Portugal: uma análise de políticas públicas e legislação anti-discriminação da Universidade de Coimbra. "Mais do que apenas discutir os recentes acontecimentos", é necessário criar um "debate sério" sobre políticas públicas de policiamento e categorização dos bairros”.
Para a especialista não se pode analisar o acontecimento no Jamaica como "um incidente isolado". Temos de perguntar: "Por que é que os residentes de determinados bairros têm um dia-a-dia de policiamento e que tipo de policiamento é que se considera que estas zonas precisam? Se cidadãos saem à rua é porque há um problema e querem ser ouvidos. Estão a fazer uma chamada de atenção.”
O ex-ministro da Administração Interna, Rui Pereira, é cauteloso. “Recuso-me a ver estes incidentes como uma oposição entre polícias e cidadãos. A polícia tem a obrigação de defender o estado de direito e a ordem democrática e serve para defender os nossos direitos. Mas não podemos olhar os acontecimentos de forma descontextualizada.”
Para o jurista, que tinha a pasta em 2008 quando se deram os incidentes na Quinta da Fonte, em Loures (com tiroteios e meia centena de pessoas envolvidas em incidentes, durante dois dias), “a polícia foi chamada ao Jamaica porque havia distúrbios e violação dos direitos das pessoas”: “A própria polícia está a investigar. Não podemos presumir que actuou ilicitamente antes de serem feitas averiguações.”
Rui Pereira diz, porém, que “nada justifica” os ataques à esquadra e a carros: “Esses acontecimentos são graves e tem que haver uma acção firme." E lembra que a segurança é um direito consagrado na Constituição.
Já Mamadou Ba, do SOS Racismo, que está a reunir material para apresentar queixa ao MP sobre a actuação da PSP no Jamaica, não tem dúvidas: “O vídeo desmonta um padrão da polícia na intervenção dos bairros que está inscrita na violência gratuita. Vemos um agente a dirigir-se ao pai do jovem que ia deter e sem nenhuma razão começa a agredi-lo com violência. O pai não ofereceu resistência não fez nada que o justificasse.”
Relatórios condenam PSP, penas são diminutas
No ano passado, o Conselho da Europa (CE) afirmou que Portugal está no topo dos países da Europa Ocidental com o maior número de casos de violência policial.
Segundo os últimos dados da IGAI, houve 772 queixas em 2017, pouco mais do que no ano anterior. Foram poucas as penas disciplinares aplicadas aos agentes: desceram de nove para seis, entre 2016 e 2017. Mas a IGAI sublinhou ser “altamente preocupante” o número de denúncias de ofensas à integridade física por parte das forças de segurança, que totalizaram 267 e representam um terço do global (34,6%).
No projecto coordenado por Silvia Rodríguez Maeso os investigadores têm tentado aceder aos casos investigados pela IGAI, a “polícia dos polícias”, e a processos disciplinares instaurados a agentes. A coordenadora critica a instituição por ausência de transparência nos processos. “Numa inspecção como a IGAI não temos relatórios específicos públicos sobre como se faz o controlo das forças policiais e o policiamento das chamadas zonas urbanas sensíveis. A Assembleia da República tem de fazer esses pedidos e a IGAI responder.”
Porém, para o operacional do Corpo de Intervenção da PSP Manuel Morais, que está a terminar um mestrado sobre a acção policial nas zonas urbanas sensíveis, os dados sobre Portugal em relatórios internacionais não são mais preocupantes do que em outros países. É afirmativo na defesa dos colegas: “Não se pode confundir o que é o trabalho policial com o racismo."
Pelo que viu de imagens no bairro da Jamaica, o agente da PSP comenta: “É muito mais fácil dizer do que fazer o ideal, estamos a lidar com emoções. Parece-me que a polícia foi fazer o seu trabalho e foi recebida com agressividade.” Também o recurso a balas de borracha durante a manifestação em Lisboa pareceu a opção correcta "para evitar cargas policiais”. “Se dispersarem, evitam que haja conflitos físicos."
“Claro” que vê uma ligação entre os três acontecimentos: “O facto de saírem as imagens fez despertar a violência noutros lugares.” E prevê: “Vai haver mais tentativas, de forma a amedrontar os políticos para ver se amedrontam os polícias.”
Embora admita que é preciso mudar muita coisa “na polícia e na sociedade”, diz: "Não se podem tratar problemas sociais como problemas policiais.”
O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, não respondeu às questões colocadas pelo PÚBLICO sobre a polícia que tutela.