O que é demais não presta

Quando arrumamos as pessoas em gavetas, existe também outro risco. A generalização é um buraco no qual tropeçamos com alguma facilidade. De tão fácil que é, torna-se tentador confundir a árvore com a floresta.

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Daniel Rocha

Isto não vem de ontem, também não começou hoje e, infelizmente, não vai acabar amanhã. Os abusos de autoridade, a repressão e a ostracização marcam presença em praticamente todos os capítulos da história da humanidade. Ao longo dos anos, todos temos sido culpados. Uns por iniciativa própria, outros por indiferença, mas ninguém fica ilibado neste delito social. Aquilo que aconteceu recentemente no Bairro da Jamaica, no Seixal, e, mais tarde, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, são apenas mais dois dos muitos sinais de que algo não está bem.

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Isto não vem de ontem, também não começou hoje e, infelizmente, não vai acabar amanhã. Os abusos de autoridade, a repressão e a ostracização marcam presença em praticamente todos os capítulos da história da humanidade. Ao longo dos anos, todos temos sido culpados. Uns por iniciativa própria, outros por indiferença, mas ninguém fica ilibado neste delito social. Aquilo que aconteceu recentemente no Bairro da Jamaica, no Seixal, e, mais tarde, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, são apenas mais dois dos muitos sinais de que algo não está bem.

A ideia do “nós e eles” normalizou-se demais. Desde sempre que vivo na Amadora e, no início dos anos 2000, eu fazia parte dessa espécie praticamente extinta que eram as crianças que brincavam na rua. A vantagem de crescer num subúrbio naquela época estava na diversidade de culturas, dialectos e pontos de vista. Éramos imensos e todos tínhamos algo em comum: vontade de brincar. Os únicos vestígios de racismo surgiam apenas quando a polícia aparecia e não nos tratava a todos da mesma forma. Demorei a entender, mas com o tempo tornou-se óbvio este “nós e eles”.

Existe muito esta obsessão com a colocação de rótulos e respectiva medição de forças: “público vs. privado”, “esquerda vs. direita, “patrões vs. empregados”, por aí adiante. A falta de auto-estima e insegurança do ser humano levou-o a refugiar-se em identidades colectivas que lhe dessem alguma estabilidade — ainda que ilusória. No fundo, não passamos de um bando de assustados que, ao verem a sua etiqueta descolar-se, imediatamente se tornam agressivos e violentos. Quando arrumamos as pessoas em gavetas, existe também outro risco. A generalização é um buraco no qual tropeçamos com alguma facilidade. De tão fácil que é, torna-se tentador confundir a árvore com a floresta. Da mesma forma que se eu for uma besta, isso não faz de todos os portugueses umas bestas, é igualmente admissível dizer o mesmo de um polícia ou de um africano.

Uma coisa é certa: nada disto se vai resolver com mais ódio. Abordar este problema com violência é o mesmo que um bombeiro utilizar um extintor cheio de gasolina. A verdade é que ambos os lados foram corrompidos. As autoridades policiais cederam o seu poder à instrumentalização, tornaram-se peões neste tabuleiro de interesses. Por sua vez, as minorias foram condicionadas pela sua impotência, fragilidade e raiva. O problema do roto e do nu quando falam é esquecerem-se que ambos passam frio. No fundo, os dois lados são vítimas deste sistema social no qual escolhemos viver. Resta saber: quem ganha com tudo isto?

Não devemos associar o crime a nenhuma raça. O problema nunca esteve nos bairros sociais, está sim na origem da sua existência. Se “dividir para reinar” fosse um jogo de cartas, o racismo seria um ás. Querem dividir-nos aumentando a largura do fosso social. Independentemente das condições, todos somos refugiados no nosso próprio país. No entanto, em vez de fugirmos da guerra, escolhemos alimentá-la com ignorância, preconceito e apatia. Pode não parecer, mas estamos todos na mesma trincheira. Basta de “nós e eles”. Só quando estiver unido é que o povo será quem mais ordena.