Haverá uma mudança no poder ou uma mudança dentro do chavismo?
O acto de ruptura ensaiado pela oposição venezuelana é dado no momento em que o contexto regional e internacional é mais desfavorável ao chavismo, considera Filipe Vasconcelos Romão.
Filipe Vasconcelos Romão, professor da Universidade Autónoma de Lisboa e professor convidado da Universidade ORT do Uruguai, diz que as próximas horas são fulcrais para se perceber se as Forças Armadas vão manter o apoio ao regime de Nicolás Maduro. "Enquanto os generais estiverem controlados, é à partida mais difícil uma queda de Maduro", diz.
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Filipe Vasconcelos Romão, professor da Universidade Autónoma de Lisboa e professor convidado da Universidade ORT do Uruguai, diz que as próximas horas são fulcrais para se perceber se as Forças Armadas vão manter o apoio ao regime de Nicolás Maduro. "Enquanto os generais estiverem controlados, é à partida mais difícil uma queda de Maduro", diz.
Há dois presidentes na Venezuela. E agora?
Agora é preciso perceber aquilo a que assistimos hoje, que na minha opinião foi um passo em frente na pressão. Foi uma tentativa de voltar a criar uma dinâmica mobilizadora por parte da oposição, que depois dos protestos de 2017 surgiu fragmentada e nos últimos dois anos esteve marcada por divergências internas e também pela pressão judicial e policial do regime, que deteve vários dos seus líderes. Para consolidar a oposição era necessário primeiro os vários actores e partidos darem este passo em frente na contestação ao regime. E esse passo é dado no momento em que o contexto regional e internacional é mais desfavorável a Nicolas Maduro e ao chavismo. Estamos a assistir a esse passo em frente, um processo de ruptura formal com o regime.
Estamos a assistir a um processo de ruptura formal com o regime, tendo em conta que o próprio regime, em Dezembro de 2015, com a eleição de uma Assembleia Nacional com maioria da oposição, também deu início a um processo que rompeu com o seu carácter democrático e constitucional, ao anular os poderes da Assembleia Nacional eleita legitimamente por sufrágio universal e multipartidário. O regime anulou as funções da Assembleia e pôs em movimento a Assembleia Nacional Constituinte, que tem funcionado como assembleia de partido único e que assumiu as funções legislativas. Assistimos agora a uma ruptura entre estas duas partes.
Esse momento internacional propício à oposição também significa que houve uma concertação da nova direita da América Latina para provocar a mudança do regime?
Não direi isso. O contexto na América Latina até 2015 era favorável [a Maduro] e permitiu a continuidade de um regime que claramente entrou numa deriva autoritária, que não controlava a economia e que foi responsável por uma quebra brutal do PIB e pelo empobrecimento da população. Até 2015, o contexto regional conferia uma legitimidade que dura até à ruptura constitucional.
Nesse ano, começa-se a assistir à eleição de líderes políticos na América Latina e do Norte, nos EUA, que se opõem abertamente ao regime venezuelano, críticos do seu endurecimento e deriva autoritária, e essas posições começaram a ser expressas em organismos como a Organização de Estados Americanos, o que acabou por derivar em disposições para apoiar uma ruptura do regime. Escontexto em crescendo levou a que a oposição se sentisse legitimada e reforçada para esta autoproclamação do presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, como Presidente da República.
Os Estados Unidos, pela voz do vice-presidente Mike Pence, quase apelaram a um golpe de Estado. Há alguma legalidade neste posicionamento?
Há claramente uma ingerência externa em questões internas da Venezuela, e temos que ver que os EUA, ao longo da sua história, mais recente ou mais distante, não têm qualquer autoridade moral para passar atestados de democracia na América Latina.
Porém, devemos ter em conta quem são os actores que actualmente lideram os EUA, com Obama no poder seria pouco provável que tivéssemos assistido a uma ruptura tão explicita com a Venezuela. Com estes actores, não seria de esperar outra coisa e gera-se um efeito dominó: a partir do momento em que os EUA inspiram, conferem autoridade aos outros países da região para seguir os seus passos, sobretudo aqueles que seguem acriticamente os EUA, como é o caso do Presidente brasileiro [Jair Bolsonaro], que tem em Donald Trump a sua grande referência externa.
Mas há países que apoiam Maduro, como a Rússia e a China. O que se espera agora deles?
A China é o grande apoio, o que resta, e é estrutural para a manutenção de Nicolás Maduro no poder. A China também sofreu vários revezes nos últimos dois anos, pelas mesmas razões de Maduro. Havia no Brasil e na Argentina governos favoráveis a parcerias com a China e que perderam as eleições. Com a chegada ao poder de Mauricio Macri na Argentina - e não estamos a falar de extrema-direita, estamos a falar de centro-direita - houve um distanciamento em relação à China.
A China focou a sua aposta regional na Venezuela, tendo vários milhões de dólares de investimento na Venezuela. E é o que resta de apoio a Maduro, com excepção de alguns países como a Nicarágua, que tem problemas internos grandes, e Cuba. A China estará à espera para ver em que deriva a situação, se vamos assistir a uma mudança de poder ou a uma mudança dentro do chavismo. Ou pende para as mãos da oposição ou para dentro do chavismo, como já aconteceu noutros países em regimes autoritários noutros contextos.
Pode ser o próprio regime a produzir a mudança: ou endurecimento, com um papel mais activo das Forças Armadas, ou de Diosdado Cabello, que é o presidente da Assembleia Constituinte, ou eventualmente com o sector mais reformista, o que é mais difícil pois o sector reformista do chavismo foi sendo depurado nos últimos anos - o último caso aconteceu em 2017 com a demissão e depois o exílio/fuga de Luisa Ortega, a procuradora geral da república.
Que reacção se pode esperar das Forças Armadas?
O poder de Maduro assenta neste momento quase exclusivamente nas Forças Armadas. Enquanto os generais estiverem controlados, é à partida mais difícil uma queda de Maduro contra a sua vontade. Mas também sabemos que o regime não é monolítico, tem vários alinhamentos internos. Penso que as próximas horas serão fundamentais para se perceber para que lado irão pender as Forças Armadas, se vão manter o apoio ao regime. Temos que esperar para ver se há alguma alteração endógena ou exógena em relação ao regime.
Para isso vai ser importante perceber como evoluem os protestos, se sectores mais radicais ou agitadores não vão provocar acções governamentais mais musculadas, e depois, numa segunda linha, vermos se as coisas decorrerem com normalidade, perceber como vai ser a acção judicial e policial contra o que é entendido pelo chavismo como um golpe de Estado.
E a população, de que lado se vai posicionar maioritariamente?
O que sabemos é que as eleições que elegeram Maduro tiveram cerca de 60% de abstenção e que nas eleições houve um apoio bastante grande ao regime. Se compararmos com outros actos eleitorais, poderemos pensar que nesses 60% estão muitos cidadãos que perderam a ligação com o regime. Com base nestes dados, estou convicto que num país cuja economia tem uma queda de 10% ao ano, a maioria da população já não está ao lado do regime. Resta saber até que ponto, no seu cálculo custo-benefício, lhes começa a compensar sair para as ruas e contribuir para a queda do regime.
Hugo Chávez escolheu mal quando optou por Maduro para ser o seu herdeiro?
Não, julgo que no momento em que Chávez morreu, a crise não era tão profunda, devemos ter em conta o preço do petróleo e a enorme dependência desta matéria prima. Três coisas contribuíram para o sucesso de Chávez: as desigualdades da etapa anterior à sua chegada ao poder, a alta do preço do petróleo que permitiu lançar programas sociais de apoio que diminuíram a desigualdade e permitiram que no índice Gini [indicador de desigualdade na distribuição do rendimento], a Venezuela subisse consideravelmente, e o carisma do próprio Chávez que tinha traços de pragmatismo que não estão presentes em Maduro.
Muitas das acções de Maduro são fruto da ausência de uma autoridade sobre o regime e sobre outras figuras do regime. Chávez nunca transgrediu numa eleição, as eleições com Chávez eram validadas pela comunidade internacional e essa linha vermelha nunca foi ultrapassada. Vale o que vale, é uma conjectura, mas tenho dúvidas que com a sua autoridade as coisas tivessem resultado numa situação destas ou que ele quisesse um endurecimento tão evidente. Pelo menos do ponto de vista eleitoral e da Constituição, nunca deu provas de desejar um endurecimento e a ilegalização da oposição.