CTT, um grande negócio para o Estado
A não ser que haja alguma inovação inesperada num futuro próximo, os serviços postais estão condenados a definhar até à sua total irrelevância.
Há uns meses, um amigo contou-me uma história interessante sobre o nascimento da Netflix. A Netflix, recorde-se, é o principal fornecedor mundial de filmes e séries via streaming, ou, se preferir, pela internet. Tem 140 milhões de subscritores e quem a subscreve pode ver os seus filmes e as suas séries num computador, num tablet ou no telemóvel e, com o dispositivo adequado, também os pode ver numa televisão.
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Há uns meses, um amigo contou-me uma história interessante sobre o nascimento da Netflix. A Netflix, recorde-se, é o principal fornecedor mundial de filmes e séries via streaming, ou, se preferir, pela internet. Tem 140 milhões de subscritores e quem a subscreve pode ver os seus filmes e as suas séries num computador, num tablet ou no telemóvel e, com o dispositivo adequado, também os pode ver numa televisão.
O negócio da Netflix arruinou, ou contribuiu para arruinar, o negócio do aluguer de filmes com suporte físico, seja com as arcaicas cassetes de VHS, os velhinhos DVD ou o desactualizado blu-ray. A nível mundial, a Blockbuster era líder do serviço de aluguer de filmes em suporte físico. Só nos Estados Unidos chegou a ter 4500 lojas. Eram 9000 espalhadas pelo mundo (incluindo Portugal).
Os fundadores da Netflix intuíram que o modelo de negócio do aluguer físico de vídeos estava esgotado. A Netflix, que nasceu como uma loja de aluguer de filmes pelo correio, evoluiu para o online. Hoje, é uma empresa poderosa e valiosa, com uma cotação de mercado a rondar os 150 mil milhões de dólares. Esta história é o exemplo de alguém que saiu a tempo de um negócio, investindo no seu sucessor. Já a Blockbuster foi à falência em 2010.
A história não se fica por aqui. Em 2000, numa altura em que a Netflix estava a ter dificuldades em arrancar e dava prejuízo, os seus fundadores propuseram à Blockbuster, que estava no seu auge, que os comprasse. Novas tentativas de venda foram feitas nos anos seguintes. A Blockbuster trabalharia simultaneamente nos dois mercados, ficando os fundadores da Netflix responsáveis pelo online.
Conta a história que o CEO da Blockbuster se riu com desdém de tal desfaçatez e, claro, mandou-os dar uma curva. Como se depreende destes exemplos, não perceber o momento em que um modelo de negócio está esgotado invariavelmente dá muito prejuízo. A decisão da Blockbuster de não comprar a Netflix deve fazer parte dos manuais de Gestão como um dos piores erros do século.
Que tem isto a ver com o título? Outra história ajuda a explicar. Há uns anos, li numa coluna de opinião um exemplo perfeito sobre a dificuldade de fazer previsões, em especial previsões tecnológicas. Contava o colunista (de cujo nome não me consigo lembrar, peço desculpa) que tinha estado a folhear umas revistas dos anos 60 do século passado e que se deparou com um cartoon futurista sobre os correios. Nessa imagem, o carteiro pilotava uma espécie de mota com hélices de helicóptero que lhe permitiam voar e entregar as cartas à janela, qualquer que fosse o andar de um prédio.
Não vi o cartoon, mas é impossível não sorrir. O cartoonista enganou-se na inovação tecnológica. Sessenta anos depois, as motos não são muito diferentes do que eram. A inovação não foi o modo de entregar cartas, mas sim o próprio conceito da carta. Só por romantismo ainda há quem mande cartas e postais. Quem tem de escrever a alguém manda um email. Menos romântico, mas bem mais seguro, rápido, barato e versátil. Cartas a sério, por ano, devo receber uma. De uma amiga nos Estados Unidos, que manda uns fantásticos postais de Natal às minhas filhas. Além disso, recebo publicidade, contas e extractos bancários. E recebo as contas e os extractos por preguiça, dado que as empresas me estão sempre a pedir que veja as contas online ou a autorização para usarem o email.
Ou seja, por muito que nos custe, os serviços postais representam um modelo de negócio em decadência. Não é por acaso que o salto da Netflix se deu quando evoluiu das entregas físicas para as virtuais. Em vários países, os correios são historicamente importantes, até para garantir a unidade e integridade dos territórios nacionais. Mas a sua essência está tecnologicamente obsoleta. Mesmo a entrega de encomendas é já feita por diversas outras empresas. O mercado dos CTT está em vias de extinção.
Em Portugal, a fúria privatizadora dura desde os anos 80 e atravessa todos os governos. Vários crimes económicos foram cometidos à custa de muitas privatizações, gerando-se monopólios privados que atentam contra o interesse público. A privatização dos aeroportos, criando um monopólio privado, é disso o exemplo mais recente.
Mas, no caso dos CTT, tudo indica que foi um incrível negócio para o Estado, rendendo mais de 900 milhões de euros. A não ser que haja alguma inovação inesperada num futuro próximo, os serviços postais estão condenados a definhar até à sua total irrelevância. Tal como os donos da Netflix, que se viram livres do ultrapassado negócio por correio, Portugal viu-se livre in extremis de uma empresa condenada.
Quem fez um péssimo negócio foram os privados que os compraram. Hoje a empresa valerá cerca de metade. Com a desmaterialização dos documentos oficiais, o Estado, possivelmente o principal cliente dos CTT, deixou de recorrer tanto aos correios. É verdade que os nossos tribunais ainda gostam de enviar notificações por correio, mas isso são consequências de um sistema de justiça arcaico, que não se deixa modernizar. O resto da sociedade evolui.
“Costa pressionado pelo PS a prometer reversão da privatização dos CTT” era o título de uma notícia do PÚBLICO de segunda-feira. Artur Penedos, ex-deputado do PS, há duas semanas, escreveu uma coluna aqui, no PÚBLICO, dizendo que era urgente reverter a privatização dos CTT. O principal argumento era de que Portugal era um caso único com uns correios 100% privados.
É comovente esta preocupação do PS em estancar os prejuízos dos privados que compraram os CTT e que agradeceriam aos céus a indemnização que receberiam pela nacionalização, livrando-os dos sarilhos em que se meteram. E, se tivermos em conta que, muito provavelmente, o Banco Central Europeu nunca permitiria que a parte bancária dos CTT fosse nacionalizada, apenas se nacionalizaria a parte dos CTT que dá prejuízos. Belo negócio para os privados, que receberiam uma indemnização para se verem livres dos serviços postais, que dão prejuízo, e que ficariam com os serviços financeiros para si.
Claro que a desculpa dada para a renacionalização não é resgatar os privados que investiram nos CTT. A desculpa é a preocupação com o interior. E, com certeza, alguns dos que a defendem fazem-no com a melhor das intenções. Mas o interior precisa é de serviços públicos que não estejam condenados ao desaparecimento e de investimento em coisas úteis e sustentáveis. Não de inutilidades românticas do século passado.