Sharon Van Etten dentro de uma bolha de felicidade
Ao quinto álbum, descobriu que pode deixar de dividir os seus discos entre rupturas e desaires amorosos. Remind Me Tomorrow é um disco para se pensar no passado e no futuro.
Não é nada que não aconteça à maior parte daqueles que, quase a despedir-se da adolescência, se vêem, por fim, a fechar a porta da casa dos pais num derradeiro golpe aplicado ao cordão umbilical. De repente, esse primeiro passo de mala às costas não é igual ao que qualquer outro dia, encerra um capítulo fundamental e expande quase até ao infinito o mundo lá fora: tão imenso e carregado de possibilidades extraordinárias, quanto inóspito e aterrorizador. E é por isso que Sharon Van Etten canta em Seventeen, título que rima justamente com (Bruce) Springsteen, “I wish I could show you how much you’ve grown”, numa carta que expede para a Sharon de 17 anos.
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Não é nada que não aconteça à maior parte daqueles que, quase a despedir-se da adolescência, se vêem, por fim, a fechar a porta da casa dos pais num derradeiro golpe aplicado ao cordão umbilical. De repente, esse primeiro passo de mala às costas não é igual ao que qualquer outro dia, encerra um capítulo fundamental e expande quase até ao infinito o mundo lá fora: tão imenso e carregado de possibilidades extraordinárias, quanto inóspito e aterrorizador. E é por isso que Sharon Van Etten canta em Seventeen, título que rima justamente com (Bruce) Springsteen, “I wish I could show you how much you’ve grown”, numa carta que expede para a Sharon de 17 anos.
“Lembro-me de que [nessa altura] tinha uma vontade muito forte e pensava que sabia tudo aquilo que queria da vida, para onde queria ir, quem queria ser”, recorda em conversa com o Ípsilon. “Foi a primeira vez que deixei a minha casa e ainda olho para essa pessoa que então era desejando que pudesse dar-lhe um abraço e dizer-lhe que vai correr tudo bem.” Porque acontece também a muitos dos que se metem a caminho da independência chegar à rápida conclusão de que o futuro não é uma linha recta traçada com um marcador preto sobre uma folha branca – sem desvios nem equívocos.
No caso de Van Etten, as certezas ruíram muito rapidamente. Quando saiu de casa dos pais em New Jersey, para frequentar um curso sobre a indústria discográfica na MiddleTennessee State University, bastou-lhe um ano para dispensar as aulas e seguir o conselho de um amigo mais velho que lhe prescreveu uma receita simples: trocar a teoria pela prática. Em vez de se enfiar nas salas de aula a receber passivamente, empregou-se no Red Rose Café, uma mistura de restaurante, sala de concertos e loja de discos na pequena cidade de Murfreesboro. Por lá se aguentou seis anos, que poderiam muito bem tê-la afundado no mais profundo anonimato daí em diante, não fosse uma relação amorosa – que viria a definir como “tóxica” – a levar a partir e a abandonar aquilo que tinha construído com a sua vida adulta.
Assim, em 2010, ano em que lançou o EP Epic, a cantautora encontrava-se já em Brooklyn, Nova Iorque, e dava início a uma discografia de marca abertamente confessional e que a própria divide entre álbuns de ruptura amorosa e de coração despadaçado. Ou seja, a única diferença até agora seria apenas a distância temporal em relação ao momento do repetido desaire das suas relações. “Muitas das canções do novo disco [Remind Me Tomorrow] vêm de quando decidi ficar em casa e concentrar-me na minha relação e na minha vida”, confessa. “Estou numa relação positiva, comecei a formar família, estou a continuar com os meus estudos universitários e a experimentar com outras áreas criativas, tudo coisas que me colocaram numa disposição muito diferente.”
Embora pudesse destoar do perfil de Sharon Van Etten por que o seu público se enamorou – presente em álbuns de elegância dorida tais como Tramp (2012) ou Are We There (2014) –, a vida da cantautora alinhou-se nos últimos anos num conjunto de factores que a abasteciam sobretudo de sentimentos positivos e de, essa era a grande novidade, uma inédita fé nas relações. Quer através da sua parceria amorosa com o manager Zeke Hutchins, quer através da gravidez de um rapaz que entretanto já chegou ao mundo há quase dois anos. “As canções de amor que começaram por ser dirigidas ao meu parceiro transformaram-se em canções de amor para o meu filho, porque engravidei durante o processo de composição”, conta. “Mas depois gravitei também em direcção a sonoridades mais negras, porque apesar de me encontrar numa bolha belíssima da minha vida familiar, não podia deixar de reconhecer a escuridão que estava a tomar conta do mundo.”
Poucas imagens serão tão fortes, aliás, quanto aquela que Sharon guarda da noite de 8 de Novembro de 2016. “Estava grávida e literalmente a ver o Trump ser eleito”, lembra. “E tentei não chorar porque não queria que o meu filho absorvesse as minhas emoções negativas.” Em vez disso, Remind Me Tomorrow passou a ser um disco feito da assimetria entre o mundo interior da cantora e o mundo exterior: a vida pessoal desfasada do andar cabisbaixo e pesado do planeta inchado de dores que sentia à sua volta.
17, 37, 50
Remind Me Tomorrow soa a qualquer coisa de diferente na discografia de Sharon Van Etten, mas não apenas porque o seu quinto disco cai fora das categorias break-up record ou heartbreak record. Não é só a estabilidade da sua vida afectiva a contribuir para um efeito libertador nas suas canções. Sharon justifica-se dizendo que “não estava a pensar num novo álbum de Sharon Van Etten”. Foi, na sua descrição, acumulando ideias até que, em 2017, sentiu uma “maior comichão criativa” e resolveu investigar as 40 demos guardadas numa pasta do computador. Essas demos davam já conta do rumo que a sua criatividade tomara ao partilhar uma sala de ensaios com o actor Michael Cera (revelado pela série Arrested Development), cujo arsenal de sintetizadores empurrou Etten para sonoridades inesperadas. “Pousei a guitarra só para libertar a minha cabeça e experimentar coisas diferentes, mas acabei por gravitar na direcção das teclas e entusiasmei-me muito por poder experimentar algo de novo.”
Aceitando como mandamento que qualquer artista deve tomar riscos e não “tentar caçar alguma coisa em particular”, Sharon Van Etten assistiu da primeira fila ao exemplo claro de Nick Cave, alguém que “pode ser negro, pessoal e romântico num só fôlego”, enquanto assegurava as primeiras partes de uma digressão do australiano. Foi só depois dessas datas em 2013 que começou a esboçar, sem pressa, as suas novas criações. E foi nessa digressão, aliás, um agente a descobriu e lhe propôs o casting responsável pela sua carreira de actriz – coisa em que nunca tinha pensado – como parte do elenco da série sobrenatural The OA. Tudo somado – maternidade, carreira de actriz e curso de Psicologia –, Sharon Van Etten desconfia também que estas suas ocupações se alimentam mutuamente e têm-na ajudado a um questionamento da importância do passado.
No fundo, tem multiplicado formas de se olhar de fora. E de entrar em diálogo com essas outras Sharons que povoam a sua vida. Aquela que, aos 50 anos, prevê dedicar-se à psicologia profissionalmente; aquela que, aos 37, gravou o seu quinto álbum e descobriu que pode não ter sempre a cabeça e as melodias enterradas em amores falhados; aquela que, aos 17, achava que sabia quem seria aos 37 e aos 50, e falhou redondamente. Só que o falhanço, Sharon sabe agora, não é necessariamente mau.