Gilles Lipovetsky: “O capitalismo é que é a grande força revolucionária”

O autor de A Era do Vazio, que há 36 anos assinalava a entrada da espécie na era do individualismo, continua polémico. Defende quotas para a imigração, não acredita que o ambiente se salve com mudanças de comportamentos, e, se é favorável ao MeToo, acha que as mulheres não ganham em assumir o estatuto sistemático de vítimas.

Foto
Séergio Azenha

Celebrizado com um livro bastante mais consensual hoje do que quando foi originalmente publicado em 1983 – A Era do Vazio –, o filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky, hoje com 74 anos, prosseguiu a sua tarefa de nos ajudar a ver a sociedade em que vivemos, e perceber as grandes correntes de força que a transformam, numa sucessão de obras como O Império do Efémero (1987), A Terceira Mulher (1997), Os Tempos Hipermodernos (2004), A Sociedade da Decepção (2006) ou A Cultura-mundo (2008). O seu livro mais recente, Plaire et Toucher, cujo título é uma citação do prefácio de Racine a Bérénice, deverá ser também lançado em breve em tradução portuguesa pelas edições 70, e saiu em 2017 em França com uma capa ilustrada com os célebres sapatos de salto alto gigantes de Joana Vasconcelos, artista com quem Lipovetsky partilha uma visão simultaneamente crítica e fascinada pelo mundo da moda.

O Ípsilon falou com o teórico da hipermodernidade na Coimbra Business School, onde Lipovetsky deu na sexta-feira passada uma conferência sobre “A sociedade do hiperconsumo”. Não diabolizando a sociedade de consumo, na qual vê muitos aspectos positivos, o autor critica, sim, os excessos do individualismo e do consumismo, e acredita que o caminho mais prometedor para conseguirmos reequilibrar as patologias do mundo contemporâneo passa por reinventar a educação.

Hoje como em 1983, Gilles Lipovetsky tem opiniões fortes e não receia a polémica. Nesta entrevista, ironiza sobre os seus compatriotas que acham que não ter dinheiro para ir de férias ao estrangeiro é quase uma violação dos direitos humanos, mas percebe-os, porque “o capitalismo cria necessidades de tal modo fortes que as pessoas sentem que vivem num inferno”.

Tendo testemunhado o Maio de 68, é dos que pensam que a revolta estudantil favoreceu o aparecimento desta cultura do individualismo, mas precisa: “Por trás do Maio de 68 está uma coisa infinitamente mais forte do que a contracultura: o novo capitalismo, que não cessa de criar necessidades, de convidar ao prazer, de renovar constantemente o nosso quadro de vida.” O capitalismo, diz, “é que é a grande força revolucionária”. E não acredita que exista qualquer alternativa a ele.

Se relermos hoje A Era do Vazio (1983), claro que há coisas que mudaram bastante desde que o livro foi escrito, mas a sua intuição sobre a emergência de uma cultura do individualismo narcísico parece manter-se bastante actual neste mundo de selfies.
O livro acentuou uma realidade que começava a existir de forma profunda, a vinda de um novo tipo de individualismo. Os profissionais do pensamento não se aperceberam disso, os grandes mestres da sociologia – Touraine, Baudrillard, Bourdieu – não têm uma palavra sobre o individualismo. Quando se sublinhava esse aspecto, troçavam e diziam que era uma filosofia pop. Agora é uma evidência. O mérito desse livro foi intuir que a conquista de si, a afirmação do eu, se tinha tornado um fenómeno social, e não apenas anedótico. Claro que o egoísmo acompanha a história da humanidade, não há aí nada de novo, mas nas sociedades antigas havia sistemas de referência que enquadravam o indivíduo, ao passo que nesta terra do vazio cada um é enviado para se procurar a si mesmo.

Tendo em conta que publicou A Era do Vazio há 36 anos, a sua actualidade, num mundo que muda a um ritmo cada vez mais acelerado, não é paradoxal?
Não é necessariamente contraditório, porque essa velocidade a que as coisas mudam está inscrita na cultura narcísica, que exige constantemente novas manifestações. O livro propunha o conceito, mostrava por onde íamos, mas depois não cessaram de aparecer coisas novas. Quando o escrevi, ainda não havia Internet. Já falo de computadores pessoais, [que] eram uma coisa de engenheiros. A Internet terá um papel maior nas transformações da nossa sociedade. Nos anos 50 havia o carro e a TV, eram esses os objectos-farol, e a partir dos anos 90 vieram os telemóveis e depois os smartphones. Hoje temos uma cultura do telemóvel. A TV e o automóvel já tinham favorecido o nascimento do individualismo, mas de tipo mais limitado. A TV remete para a vida privada, cada um vê-a em sua casa, mas em família. E também o carro era a viatura familiar. A sociedade de consumo está no centro disto, mas no início era semicolectiva. Hoje o individualismo é mais solitário.

Foto
Sérgio Azenha

Detectou e caracterizou precocemente esta sociedade do individualismo e do consumismo, mas ao mesmo tempo evitou sempre uma leitura demasiado pessimista, ou moralista.
Sim, A Era do Vazio era um livro crítico, mas não apocalíptico. Percebia o que a sociedade de consumo produz de positivo. Claro que isso para os intelectuais era insuportável. Achavam que era tudo para deitar fora. Mas o livro não tem essa tonalidade, procura mostrar as contradições, e ainda hoje mantenho o mesmo olhar. Muitos intelectuais acham que estamos na barbárie, mas isto não é a barbárie. Temos problemas e há muitas coisas de que não gosto nesta sociedade, mas o trabalho do intelectual não é ser sistematicamente hostil à modernidade.

Propôs termos como “hipermodernidade” e “hiperconsumo”, para sugerir que vivemos num tempo em que os traços da modernidade estão exacerbados, e tem defendido que é preciso corrigir os excessos do consumismo. Mas de que forma, já que não podemos voltar ao passado?
Não sou um conservador, que é aquele que pensa que a dinâmica vai demasiado longe e é preciso travá-la para conservar o que está bem. Em termos gerais, não sou dessa opinião, não acredito no travão. A solução tem de ser acelerar a inovação. Vejamos o exemplo da ecologia: poluímos de mais, é verdade, mas o que vamos fazer? Pregar moral às pessoas?

Acredita numa resposta científica?
Precisamente. Temos de dar dinheiro aos investigadores, aos laboratórios, às universidades. Já temos carros eléctricos e edifícios que reciclam a energia e a água, e não é a moral que regula isso. São dispositivos técnicos. Se dissermos aos jovens que não comam carne, pode ser que alguma juventude urbana consuma menos, mas como é que vamos pedi-lo aos chineses ou aos africanos, que ainda mal começaram a comer carne? A moral é boa para uma elite, mas não serve como solução global.

Muitos dos seus livros mais recentes assinalam o facto de, nas democracias ocidentais, o aumento do consumo estar a ser acompanhado de um crescente mal-estar, como ainda há pouco se confirmou com os “coletes amarelos” em França. O capitalismo cria necessidades a que não consegue responder?
Sim e não. As frustrações materiais são muito importante para muita gente. As pessoas não querem reduzir o seu estilo de vida. Queixam-se de que não podem partir para férias, como se isso fosse quase uma violação dos direitos humanos. Dantes não iam de férias. Agora até os reformados, que costumavam ser os avós tranquilos que ficavam em casa a ver televisão, querem ir à Tailândia. E ao restaurante. E, se não podem ir, é a barbárie. É claro que o consumismo transformou a nossa maneira de viver, e para as pessoas que ficaram de fora dos sectores da globalização e que vêem o seu nível de vida a descer, há uma contradição entre necessidades e recursos que lhes torna a vida insuportável. É isto que explica o que se está a passar com os “coletes amarelos”. A França é a sexta economia mundial, a idade de reforma é baixa, a educação é gratuita, há Segurança Social, mas o capitalismo cria necessidades de tal modo fortes que as pessoas sentem que vivem num inferno. Mas também convém não focar tudo na vida material nem concluir que o capitalismo é o único culpado. Uma das fontes de mal-estar é o individualismo, que torna toda a vida problemática. “Estou sempre a discutir com a minha mulher, não consigo exprimir-me no trabalho, detesto os meus colegas, não tenho a vida com que sonhei.” O individualismo rompeu com o mundo da tradição e da religião, que regulava os comportamentos. As pessoas não eram felizes, mas aceitavam. Agora não aceitam. Uma parte dos “coletes amarelos” é gente que tem razões para ter medo, porque a sua situação se está a degradar. Mas vejo à minha volta jovens plenamente integrados na dinâmica da globalização, que vão trabalhar para Nova Iorque, têm agências de advogados, ganham muito dinheiro, e também eles dizem que têm uma vida de merda, porque não têm tempo para viver.

E não receia que este mal-estar possa acabar por erodir as democracias europeias, algumas delas já em deriva autoritária, e favorecer o regresso de regimes ditatoriais?
Na época de A Era do Vazio, diria que não, mas hoje seria mais reservado. Veja o que aconteceu no Brasil. E na Europa já há gente que diz: se vivemos mal, estamo-nos nas tintas para a democracia liberal. Tocqueville dizia que havia uma tendência nas sociedades para preferirem a segurança à liberdade, e acho que hoje há um movimento que vai nesse sentido. Se as democracias não são capazes de criar emprego, de oferecer perspectivas de futuro, as pessoas podem começar a achar que a democracia não funciona e preferir um sistema autoritário. Não é impensável.

No seu último livro, Plaire et Toucher, que deverá sair em breve em edição portuguesa, mostra como os mecanismos da sedução são hoje centrais em todas as dimensões da vida. Mas há um domínio, o da política, em que o esforço de seduzir parece estar a falhar?
No capitalismo, a sedução funciona: todos querem ir de férias para lugares exóticos. Os políticos também tentam seduzir, mas fracassam. O que resulta é o populismo. Trump seduziu uma parte dos americanos, e fê-lo sem ser propriamente um sedutor. A sedução é complicada. Hitler seduzia as pessoas, mas também não era um charmeur, De Gaulle tinha a sedução do pai, da autoridade.

Foto
O seu livro mais recente, Plaire et Toucher, saiu em 2017 em França com capa ilustrada com os sapatos de salto alto gigantes de Joana Vasconcelos, artista com quem Lipovetsky partilha uma visão crítica e fascinada pelo mundo da moda Sérgio Azenha

E Macron?
Repare que só teve 24% na primeira volta. Não se pode dizer que seja a sedução total, não é a Marilyn Monroe. Depois, sim, teve muito mais, mas contra a Marine le Pen. E agora é detestado. A sedução também é frágil. Macron foi eleito e um ano depois é verdadeiramente odiado.

Essa é outra marca dos tempos. O voto é muito mais flutuante.
E é mais uma manifestação do individualismo. Havia um voto de classe. O meu avô era operário e votava comunista, nunca votaria na direita. Hoje temos um eleitorado pouco ideológico, que olha e experimenta, um pouco na lógica do self-service.

O papel das mulheres na sociedade contemporânea é um tema recorrente na sua obra. Como é que vê o movimento MeToo?
É um fenómeno complexo. As mulheres deixaram de suportar a indignidade e isso é sem dúvida positivo. Sou favorável ao MeToo. Mas o movimento também empurra as mulheres para assumirem um estatuto sistemático de vítima, que não penso que seja positivo para elas. Claro que há muitas mulheres que são vítimas, mas se não estamos a falar de violência física, se um tipo diz a uma mulher que lhe quer apalpar os seios, ela deve responder no mesmo tom, humilhá-lo também, que os homens também têm pontos fracos. Não faz muito sentido ir logo para o Twitter dizer: “Ele disse-me aquilo, é um horror, sou uma sobrevivente.” O que irritou Catherine Deneuve [a actriz foi uma das subscritoras do documento O Direito de Importunar, que criticava os excessos do movimento] foi essa ideia das mulheres como uns seres pequenos e frágeis. As mulheres são vítimas, sim, mas há um excesso de vitimização: muitas das situações denunciadas não correspondem a uma ignomínia moral insuportável. Mas uma das patologias do individualismo é justamente o de nos colocarmos no papel de vítima.

Testemunhou o Maio de 68. Partilha a tese de Régis Debray que vê na revolta estudantil um triunfo do capitalismo e do individualismo?
Sim, mas acho que mesmo sem o Maio de 68 esta dinâmica do hiperindividualismo ter-se-ia produzido, porque, no fundo, a força que dissolve a tradição, a comunidade, é o capitalismo. Marx percebeu isso muito bem. O capitalismo destrói tudo. Por trás do Maio de 68 está uma coisa infinitamente mais forte do que a contracultura: o novo capitalismo, que não cessa de criar necessidades, de convidar ao prazer, de renovar constantemente o nosso quadro de vida. O capitalismo é que é a grande força revolucionária.

Não há alternativa ao capitalismo?
A esquerda pode continuar a falar, mas não vejo alternativa ao capitalismo. Íamos substituí-lo por quê? Quem tem essa chave? Que tipo de economia vamos instituir em troca? Com controlos? Mas o capitalismo nunca foi hostil a um certo nível de controlo. Claro que há grandes problemas, mas a sua força é essa: vem uma crise, corrige, vem outra crise e volta a corrigir, é sempre o mesmo e sempre diferente. Depois da queda do Muro de Berlim as alternativas credíveis e globais desapareceram. Até percebo que se diabolize o capitalismo, mas não temos nada para pôr em seu lugar.

Em livros e artigos recentes tem insistido muito na importância de investirmos na educação. É o caminho mais prometedor para conseguirmos corrigir os excessos e desequilíbrios de uma sociedade que reduz o homem a uma espécie de homo consumericus, para usar o neologismo de que se serve em A Felicidade Paradoxal (2006)?
Há um enorme trabalho a fazer na educação e na formação de professores, e aí está tudo por inventar. A nossa sociedade livrou-nos de um modelo de educação detestável, autoritário, em que às crianças cabia obedecer. Eu gosto de autoridade, mas não de autoritarismo. Parece-me bem que os pais ouçam os filhos, embora depois também me irrite imenso ver como muitos deles os educam. Mas não podemos ser nostálgicos, porque o que havia antes, com os professores e pais autoritários, era pavoroso. Agora a escola é demasiado livre e isso também não é bom.

Curiosamente, os professores tendem a não ser hoje uma classe especialmente bem tratada.
Pois não. São muito mal tratados e os resultados também são maus. Quando pensamos que a escola obrigatória vai dos 6 anos, e às vezes dos 4, aos 16, estamos a falar de dez anos de escola. É muito tempo, mas uma estatística que tem sido discutida defende que entre 10% a 15% dos jovens que saem da escola mal conseguem perceber um texto. Não sabem escrever, não sabem construir uma frase. E isto não tem nada que ver com o capitalismo ou a globalização. Tem que ver com formar mal os professores e usar más ferramentas e métodos. E quero frisar um ponto que me parece importante: na economia não se pode fazer muito, temos os constrangimentos de Bruxelas, as exigências da globalização, mas na educação é o inverso, temos toda a margem de manobra. O que nos impede de criar uma escola diferente? Não há nenhum sistema de educação obrigatório na Europa. Nem as famílias são obrigadas a educar os filhos desta ou daquela maneira.

Mas a educação faz parte do sistema...
...É verdade, o que estou a dizer é um pouco abstracto, mas podemos imaginar sistemas de educação muito diferentes, não é impossível. Acho que vamos ter surpresas. Já não foi pouco termo-nos livrado do antigo sistema, que fomentava um nacionalismo agressivo e contribuiu para as guerras mundiais. Agora temos gente invertebrada e que se sente mal na sua pele. Acredito que a escola tem de encontrar compromissos sem sacralizar o antigo nem endeusar o novo. É um trabalho muito importante. É à escola que cabe formar os espíritos. Precisamos de políticos capazes de pôr a Europa em dia com a globalização, e isso implica inovar, formar elites, investir na escola. E também precisamos de políticos que ouçam o crescendo de insegurança. Ainda não falámos desse assunto, mas é fundamental. Talvez seja preciso estabelecer quotas para a imigração, um sistema que diga para onde vamos. Sem isso, criam-se fantasmas.

É preciso atender a esses receios, mesmo quando são irracionais?
Temos o Magrebe e toda a África a bater à porta da Europa. São milhões de pessoas. Somos sociedades humanistas e temos de integrar essas pessoas, mas não de qualquer modo. Acho que o melhor é a quota, porque a sociedade decide quem quer e em que número quer. Isto poderá ser chocante, mas creio que é a melhor solução política, e a política não é a moral. Como a democracia não são os direitos humanos, é a soberania do povo. Se não se ouve o povo, não é uma democracia.