“Se a polícia entrasse aqui com respeito receberia respeito”
Para os moradores do Bairro da Jamaica a repressão policial “não é nova”. Até as crianças falam dela. “Foi uma falta de educação não abordarem a situação com palavras”, diz Daniel, 12 anos.
Na televisão passam as imagens da manifestação desta segunda-feira em Lisboa e num pequeno café no Bairro da Jamaica, do outro lado do Tejo, poucos levantam os olhos da conversa. A família que este domingo saltou para o noticiário nacional a denunciar o uso excessivo e injustificado de força de uma intervenção policial não esteve lá. Entre os moradores poucos dizem sequer conhecer alguém que tenha ido protestar. Querem falar dos vídeos, da repressão policial que, dizem, “não é nova”, nem admissível, nem justificada. “Estamos muito revoltados, temos raiva, porque acções destas provocam ódio. Contra nós e contra eles.”
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Na televisão passam as imagens da manifestação desta segunda-feira em Lisboa e num pequeno café no Bairro da Jamaica, do outro lado do Tejo, poucos levantam os olhos da conversa. A família que este domingo saltou para o noticiário nacional a denunciar o uso excessivo e injustificado de força de uma intervenção policial não esteve lá. Entre os moradores poucos dizem sequer conhecer alguém que tenha ido protestar. Querem falar dos vídeos, da repressão policial que, dizem, “não é nova”, nem admissível, nem justificada. “Estamos muito revoltados, temos raiva, porque acções destas provocam ódio. Contra nós e contra eles.”
A frase é de Manuel Sousa, 51 anos, mas podia ter sido dita por Cândido Noronha, um ano mais novo. Os dois são-tomenses viveram metade da vida no bairro e falam ao PÚBLICO nesta terça-feira, na ressaca dos acontecimentos: “Se a polícia entrasse aqui com respeito receberia respeito.” Vários moradores usam expressões semelhantes: que determinados polícias chegam ao bairro “já para bater”, “entram a abrir”, que ninguém espera para perceber o que se passa. Vários falam em revistas em casa sem mandado, intimidações na rua, episódios semelhantes ao de domingo mas que ninguém “teve a sorte de filmar”, uma expressão de Cândido.
Hortêncio Coxi, de 31 anos, foi detido nesse domingo. Ficou sujeito a termo de identidade e residência, acusado pela PSP de ter arremessado uma pedra que acertou num agente, ferindo-o na boca (o porta-voz da polícia confirma que a fotografia de um homem com a boca inchada partilhada nas redes sociais e órgãos de comunicação é de um dos elementos da PSP da Divisão do Seixal, atingido). Hortêncio diz que não o fez. Na sua versão dos eventos, após uma festa ter terminado com discussões entre grupos rivais de mulheres e uma delas ter chamado a polícia (por volta das 7h30), ele terá sido empurrado por um agente sem motivo. Terá batido com a cabeça e levado com um bastão. Ofereceu resistência e tentou fugir, tendo acertado com a mão na cara do agente. Hortêncio diz que mais do que um agente o seguiu para fora do bairro e que aí foi novamente agredido. Os vídeos mostram o que se passou depois.
As filmagens onde se vê os agentes a agredirem o casal Fernando Coxi, 63 anos, e Julieta Joia, 52, pais do detido tornaram-se virais – dando origem ao protesto em frente ao Ministério da Administração Interna, esta segunda. Julieta afirma que apenas tentava proteger o filho Flávio, envolvido nos confrontos com a polícia; que quando deu por si estava no chão depois de ter levado com um bastão que lhe deixou a cara inchada; que viu o outro filho ser pisado por um polícia antes de ser detido. “Eu respeito os vizinhos, eu sempre respeitei a autoridade. Nunca contei ter que passar por isto”, afirma. Julieta apresentou queixa na esquadra da Cruz de Pau – “Não sei se valeu ou não valeu.”
A Direcção Nacional da PSP afirma que moradores reagiram à chegada dos agentes atirando pedras, que o suspeito reagiu “de forma violenta à acção policial” e, perante isto, usaram a "força estritamente necessária”. Há uma investigação a correr no Ministério Público e um inquérito interno, pelo que a PSP não fará mais comentários sobre o assunto. A SOS Racismo e a família já manifestaram intenção de apresentar queixa contra os agentes. Uma mulher envolvida nos conflitos fez queixa contra elementos da família.
Realojamento em curso
Hortêncio não é desconhecido das esquadras próximas. Diz que tem amigos a braços com a justiça e que em duas outras situações teve confrontos com agentes. Numa delas fugiu à detenção. “A partir daí fiquei marcado pela polícia.”
No domingo foi levado para a esquadra. Mais tarde, pelas 11h, deu entrada no Hospital Garcia de Orta, em Almada, acompanhado da polícia com um ferimento na cabeça sem traumatismo, náuseas e uma pequena laceração na orelha, segundo o relatório médico.
É só disso que se fala no bairro, e na escola. “Foi muito chato”, diz José, 13 anos, interrompido por Daniel, 12: “Chato, não, foi irritante."
O outro torna, sentado no murete à porta de casa: “Eu sou criança e não sei como as coisas funcionam bem, mas sei que aquilo não é correcto.” José ficou com “raiva”, diz que já não gosta de nenhum polícia, porque “eles não estão aqui para bater às pessoas”. “Foi uma falta de educação não abordarem a situação com palavras”, concorda Daniel. “Não souberam pôr-se no lugar dos outros.”
Vários moradores repetem que mesmo tendo alguém atirado pedras aos agentes, a resposta do outro lado é incompreensível. Não podem, compara Eva Salvador, 43 anos, “virar bichos”.
Ela e outros moradores falam agora de um “bairro calmo”, em que os únicos conflitos têm origem em grupos que param ali. Está tudo melhor, diz Cândido Noronha, desde o realojamento de 187 pessoas do lote 10, em Dezembro, as primeiras a sair no âmbito do processo de realojamento em que a câmara do Seixal e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana vão investir um total de 15 milhões de euros.
Na próxima fase, diz a autarquia, irá realojar-se outras 38 famílias do lote 13 em casas municipais e da Santa Casa por várias freguesias do Seixal. No Jamaica, ninguém conhece datas. Sabe-se apenas que nos próximos quatro anos todas as 234 famílias que ali moravam no ano passado vão ter casas novas.
Para trás fica o bairro, também denominado de Vale de Chícharos, de prédios inacabados pontilhados por roupa estendida, parabólicas e janelas, umas com vidros, outras sem, onde procuraram tecto centenas de famílias vindas de países de língua portuguesa nos anos 90. Nunca pararam de chegar às habitações precárias, com problemas de segurança, humidade e ventilação.
À pobreza juntou-se o tráfico, crime organizado, as rondas policiais. "Agora aqueles que eles chamam de bandidos estão presos. A polícia não vinha cá tantas vezes", afirma Aurora Coxi, irmão de Hortêncio. Preocupa-a o futuro e o filho de dois anos que lhe corre aos pés. “Nós estamos aqui a sofrer, mas daqui a vinte anos como vai ser com eles?”