Lei de Bases da Saúde: concorrência ou Constituição?
Os interesses que estão em jogo com a revisão da lei são múltiplos, diferenciados e muito relevantes.
1. A actual Lei de Bases da Saúde (LBS), aprovada em 1990 com apoio restrito aos votos do PSD e do CDS, carece – por necessidade de actualização e de clarificação – de uma profunda revisão, dando lugar a uma nova lei de bases moderna para melhorar o sistema de saúde ao serviço do país.
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1. A actual Lei de Bases da Saúde (LBS), aprovada em 1990 com apoio restrito aos votos do PSD e do CDS, carece – por necessidade de actualização e de clarificação – de uma profunda revisão, dando lugar a uma nova lei de bases moderna para melhorar o sistema de saúde ao serviço do país.
Embora no início deste processo de revisão nem todas as forças políticas representadas na Assembleia da República (AR) convergissem sobre a necessidade de revisão (sintomaticamente, várias vozes do PSD e do CDS invocaram a actualidade e suficiência da lei em vigor), assistiu-se, entretanto, a uma evolução de posições, verificando-se agora ampla coincidência quanto a essa necessidade, atendendo ao espectro de propostas de revisão apresentadas (Governo, PSD, BE, CDS e PCP).
Numa lei com a natureza de lei de bases, que reclama consenso alargado na sua aprovação para garantir longevidade normativa e estabilidade de políticas estruturais, o amplo reconhecimento da necessidade de revisão e do SNS como pilar central do sistema de saúde constituem ponto de partida positivo. Mas, em função da história do SNS ao longo de 40 anos, que nem sempre contou com apoio franco (para não dizer oposição) de certas forças políticas, será que estamos perante uma genuína confluência de posições quanto ao desígnio do SNS na prestação de cuidados de saúde, agora favorecedora de consensos políticos alargados ao invés da lei de 1990?
2. Em função do teor das propostas que deram entrada na AR, serão três os tópicos principais para que tenderá maior foco no debate – o papel e relevância do SNS, a relação público-privado-social e as parcerias público-privado – e em relação aos quais será mais problemática a possibilidade de alcançar consensos alargados. Com efeito, as soluções constantes das propostas são muito diferentes e, até, antagónicas, podendo ser classificadas em três modelos distintos: modelo de base concorrencial-liberal (de concorrência entre sectores público, privado e social), modelo de base estatizante (com prestação tendencialmente única no SNS), modelo de base pública (centrado no SNS com admissibilidade de cooperação regulada com restantes sectores).
A proposta do PSD, não obstante indique a relevância do SNS no sistema de saúde (embora preconize a privatização da sua gestão, através da generalização de parcerias público-privado), revela que se mantém fiel à LBS de 1990 quanto ao princípio da concorrência entre o SNS e os outros sectores e continua apostado em privilegiar o robustecimento dos sectores “concorrentes” do SNS, ao prever, tal como na lei actual, a possibilidade de o governo estabelecer incentivos à criação de unidades privadas. Quanto ao CDS, por razões aparentemente de conveniência política ou porventura para exorcizar o seu registo de oposição histórica infrene ao SNS, diz-se agora grande defensor do SNS quando, em 1979, votou contra o SNS. É caso para dizer que PSD e CDS, que sozinhos aprovaram a lei de 1990, continuam a acreditar na sua actualidade.
Em democracia, os partidos têm o direito de defender as soluções que consideram adequadas aos interesses do país e dos cidadãos, mas sem deixar de observar os princípios e os referenciais constitucionais. Neste sentido, parece-nos que advogar a “cooperação concorrencial” entre sectores público, privado e social, como fazem PSD e CDS, não garante os interesses maiores em causa, nem, sobretudo, está conforme à solução constitucional vigente. É despropositado insistir na “mercantilização” do nosso sistema de saúde.
3. Os interesses que estão em jogo com a revisão da LBS são múltiplos, diferenciados e muito relevantes, o que impõe que o papel e os interesses do Estado, dos agentes económicos, dos profissionais de saúde ou de outros stakeholders não devem ser ignorados ou diminuídos na revisão da LBS, mas todos se devem subordinar ao interesse fundamental: o interesse e igualdade de todos os cidadãos.
Dispor de uma LBS moderna, clarificadora e realista, dentro da fronteira constitucional, deve ser o propósito político principal na circunstância actual, não cabendo nesta oportunidade ser tempo para expressar visões de políticas de saúde particulares ou preferenciais.
A exigência de consenso em relação à LBS é uma obrigação de todos os partidos políticos, porque o bem saúde é demasiadamente valioso para que os portugueses – e a saúde dos portugueses – fiquem reféns de ciclos políticos, de condicionamentos ideológicos ou de interesses particulares momentâneos, irrealistas ou inapropriados.