Éder Militão, a agulha no palheiro
Uma pedra. Levanta-se uma pedra no Brasil e encontra-se um talento para o futebol. Descontado o exagero da imagem, esta ideia feita tem contribuído, em simultâneo, para a aceleração e para a travagem do crescimento da modalidade num país que tantas vezes veste a forma de uma bola. A geração espontânea de qualidade, de predisposição para a prática desportiva, é ao mesmo tempo um balão de oxigénio para a asma financeira dos clubes e um entrave ao seu desenvolvimento. Há milhares de exemplos que o provam por esses relvados fora. E depois há casos como o de Éder Militão.
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Uma pedra. Levanta-se uma pedra no Brasil e encontra-se um talento para o futebol. Descontado o exagero da imagem, esta ideia feita tem contribuído, em simultâneo, para a aceleração e para a travagem do crescimento da modalidade num país que tantas vezes veste a forma de uma bola. A geração espontânea de qualidade, de predisposição para a prática desportiva, é ao mesmo tempo um balão de oxigénio para a asma financeira dos clubes e um entrave ao seu desenvolvimento. Há milhares de exemplos que o provam por esses relvados fora. E depois há casos como o de Éder Militão.
Se perguntarmos a 10 futebolistas brasileiros que competem na Europa quais as principais dificuldades que sentiram na adaptação ao novo habitat profissional, nove deles vão dar a mesma resposta que deu um dia Kaká, antiga glória do Milan, do Real Madrid e da selecção "canarinha": “Existe uma diferença em relação ao espaço. No futebol brasileiro, temos mais espaço para jogar, a marcação é feita mais de longe. Aqui, os espaços são mais limitados, a marcação é feita mais de perto”.
Uma visão que vai de encontro à de Willian, ex-Shakhtar Donetsk e um dos virtuosos do Chelsea: “Aqui o futebol é mais agressivo, mais rápido. No Brasil é mais lento, temos mais espaço, mais tempo para pensar. Aqui muitas vezes não temos tempo para pensar porque estamos sempre sob pressão”. E que também bate certo com a opinião do goleador Richarlison, do Everton: “O futebol daqui é bem diferente do brasileiro. Aqui são 90 minutos de jogo pegado, de correria, usando bastante a parte táctica. No Brasil a gente tem mais tempo para pensar”.
Denominador comum de todos os testemunhos? Sim, o espaço. O espaço, esse ingrediente fundamental, a pedra de toque do futebol actual, onde o preço do metro quadrado se compara ao que agita o mercado imobiliário no Mónaco. Mas para invadir ou retirar espaço ao adversário é preciso gerir com mestria outra das condições elencadas, o mais precioso dos recursos no desporto de alta competição: o tempo. A quantidade de tempo disponível é directamente proporcional à qualidade da decisão a tomar. E quanto mais tempo de reflexão se conseguir roubar ao rival, mais se contribuirá para um gesto imperfeito ou mal calculado.
A premissa é válida para quem ataca e para quem defende, porque o controlo espacio-temporal é a melhor das virtudes que podemos encontrar num futebolista de topo, é o trampolim para esse nível seguinte a que todos aspiram. O melhor passe é aquele que deixa um colega em condições confortáveis (com tempo e espaço) para tomar a decisão seguinte, tal como o melhor posicionamento defensivo é aquele que priva o adversário dessas duas dimensões. E esta inflação de exigência táctica é o mais violento choque de realidade que pode cair sobre um jogador brasileiro a iniciar-se na Europa.
Na “sondagem” virtual de há pouco falámos de nove em cada 10. A margem restante é para os jogadores que identificam o problema directamente na raiz, nas fundações da formação do futebol brasileiro. A décalage entre o conhecimento e a evolução na forma de pensar o jogo no Brasil e na Europa é gritante, e o ritmo a que se formam treinadores num e no outro lado do Atlântico fazem lembrar a fábula da tartaruga e da lebre. São, de resto, muitos os técnicos a denunciarem essa impreparação (Dorival Júnior, por exemplo, lamenta o facto de o Brasil “nunca ter tido um suporte à formação de treinadores”), também expressa pelos jogadores: “Lá temos treinos mais longos e com menos intensidade, aqui há menos treino colectivo e mais táctico”.
Face a este desnível na abordagem metodológica, exemplos como os de Éder Militão não podem deixar de ser vistos como a agulha no palheiro. Foi somente aos 13 anos que chegou ao São Paulo, com poucas bases para lá do improviso e do instinto, e rapidamente se impôs num dos colossos do Brasil. Mas foi a autoridade com que se afirmou no FC Porto, perante um desafio bem mais exigente, que tornou claro quão invulgar é o conjunto de predicados que reúne.
Não é apenas a polivalência que faz de Militão um jogador cobiçado, ainda que o facto de poder alinhar como lateral, central e fazer ainda a posição seis seja um capital interessante. O que impressiona mesmo é o timing das decisões, a leitura instantânea que faz do jogo e o modo como se adapta às circunstâncias. Só arrisca a antecipação quando vê que é infalível e mede como poucos o instante exacto em que tem de recorrer ao desarme. Se juntarmos a isto uma saída de bola limpa na primeira fase de construção, um posicionamento rigoroso, um jogo aéreo de respeito e uma velocidade em espaço curto que lhe permite controlar a profundidade, temos em mãos o jogador do século XXI.