Centro na Mouraria vai ter consulta pioneira para tratar hepatite C
Prevalência da doença ainda é mais elevada entre os utilizadores de drogas e nas prisões. Estabelecimentos prisionais também já recebem médicos especialistas em hepatite C.
Os utilizadores de drogas que querem fazer o tratamento para a hepatite C e que frequentam o centro In-Mouraria, em Lisboa, um projecto do Grupo de Activistas em Tratamentos (GAT), vão deixar de ter de ir ao hospital. São os médicos especialistas na doença que, na sequência de uma parceria entre o GAT e o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), vão sair do consultório. A iniciativa é apresentada nesta segunda-feira, no In-Mouraria. As consultas devem começar em Fevereiro.
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Os utilizadores de drogas que querem fazer o tratamento para a hepatite C e que frequentam o centro In-Mouraria, em Lisboa, um projecto do Grupo de Activistas em Tratamentos (GAT), vão deixar de ter de ir ao hospital. São os médicos especialistas na doença que, na sequência de uma parceria entre o GAT e o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), vão sair do consultório. A iniciativa é apresentada nesta segunda-feira, no In-Mouraria. As consultas devem começar em Fevereiro.
O centro oferece rastreios à hepatite C, hepatite B, VIH e sífilis, mas também é possível ter acesso a cuidados de saúde, intervenção por pares, apoio social, material para consumo de drogas fumadas e injectadas e alimentos. A ideia é utilizar um espaço onde “as pessoas vão praticamente todos os dias”, como explica Luís Mendão, presidente do GAT, e concentrar ali o máximo de procedimentos. Para isso, a morada do centro vai estender-se aos números 81 e 83 da Calçada de Santo André (o espaço funcionava apenas na porta 79).
Até agora, sempre que se fazia um teste rápido à hepatite C e o resultado era reactivo, a pessoa era encaminhada para o hospital para confirmar a infecção pelo vírus. As análises passam a poder ser feitas no GAT In-Mouraria, bem como a avaliação do estado de fibrose hepática e a ecografia ao fígado, exames que antecedem a prescrição do tratamento. A medicação é depois levantada na farmácia do hospital e disponibilizada no centro.
O serviço será assegurado pela equipa do In-Mouraria e pelos médicos especialistas do CHULN, coordenados pelo professor Rui Tato Marinho, director do serviço de Gastroenterologia e Hepatologia, que irão ao espaço uma a duas vezes por semana.
Nas estimativas de João Santa Maria, mediador de pares no centro da Mouraria, serão admitidas para tratamento cerca de 15 pessoas por mês. O processo demora, por norma, três meses, mas já há quem fique tratado em apenas dois. No final, será produzido um estudo observacional com o objectivo de determinar a taxa de sucesso do tratamento em contexto comunitário para a hepatite C entre pessoas que usam ou usaram drogas.
“Pensamos que vamos conseguir não só tratar muito mais pessoas deste grupo, que tem sido dos mais excluídos deste tratamento, como vamos conseguir percentagens de cura muitíssimo altas”, diz Luís Mendão. “Do ponto de vista de saúde pública isso também é importante porque há um grande consenso de que um dos grupos onde ainda há transmissão é entre as pessoas que usam drogas.”
Hospital, “um local inóspito”
“O hospital para muita gente é um local inóspito. Há uma certa agressividade, particularmente em relação a pessoas que consumiram ou consomem drogas. Há um estigma, até da parte dos profissionais de saúde. Não devia haver, mas há”, diz o médico Rui Tato Marinho. Depois, “são pessoas mais ansiosas, não querem esperar, reclamam mais, estão fora do ambiente, têm de tirar a senha, têm de ir para filas, têm de pagar, por vezes... É difícil virem [ao hospital] e há até quem não venha.” Levar esta consulta para fora das instalações hospitalares é assim uma forma de “chegar perto das pessoas, ir onde elas estão”. Para os próprios profissionais de saúde “também é bom”, porque conhecem outras realidades.
O mediador João Santa Maria — o GAT recorre, nos seus vários projectos, a pessoas que já passaram ou passam pelas mesmas situações do que aquelas que recorrem aos seus serviços — também já perdeu a conta às histórias de dificuldades que surgem nos hospitais. “O último sítio que pensamos que podia discriminar pessoas é o SNS”, mas acontece. “As pessoas que usam drogas sabem que são mal atendidas e quando nós os convidamos a ir lá eles dizem que é um sítio de que não gostam” — daí a importância desta nova solução.
Por dia, o espaço na Mouraria recebe entre 60 e 70 pessoas. Algumas já sabem que será inaugurado o novo espaço. “Acho que há uma ideia generalizada de que as pessoas que usam drogas estão muito pouco preocupadas com a sua saúde, mas é mentira”, aponta João Santa Maria. “As pessoas estão preocupadas, gostavam que as infecções que têm fossem tratadas. Podem não ter os cuidados que deveriam ter, mas acho que tem tudo a ver com a necessidade de consumo.”
António (nome fictício), presença assídua no In-Mouraria, é um desses casos. Diz que não tem grandes razões de queixa dos hospitais, mas admite alguma “estranheza” quando diz que é toxicodependente. Durante a conversa, aproveita para elogiar o serviço do In-Mouraria: são "como família". Quanto ao tratamento da hepatite C, assume que é uma possibilidade. “Quero tratar-me. Tenho projectos.” Nunca o fez, diz, porque viveu nove anos na rua e torna-se difícil conciliar essa situação precária com o tratamento, que consiste na toma diária de um comprimido. Mas agora está num quarto. Pode ser que o faça.
Eliminar a doença
Tato Marinho e a sua equipa também já fazem consultas no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL). “Em dois dias conseguimos atender 60 reclusos. Fizemos 60 colheitas de sangue, 60 consultas e 60 ecografias. Isto representou o equivalente a quase 200 actos médicos e de enfermagem”, conta o médico. Pelo caminho, poupou-se em deslocações ao hospital.
“Praticamente todas as pessoas que viviam com a infecção estão tratadas”, aponta Isabel Aldir, directora para a área das Hepatites Virais e para a área da Infecção por VIH/sida e Tuberculose. Actualmente, além da comunidade de utilizadores de drogas, é nos estabelecimentos prisionais que a prevalência da doença ainda é mais elevada. “Se não tratarmos estas pessoas, o risco de perpetuação de transmissão da infecção mantém-se. Faz todo o sentido, numa estratégia de eliminar a doença enquanto problema de saúde pública, ir ao encontro das populações e tratá-las”, aponta.
Além da consulta de hepatite C, Luís Mendão assegura que também estará para breve a disponibilização de duas consultas descentralizadas para acesso à profilaxia pré-exposição (PrEP) ao VIH nos outros dois centros do GAT: o espaço Intendente — direccionado a trabalhadores do sexo, pessoas trans, migrantes e sem-abrigo — e o Checkpoint Lx, dirigido aos homens que têm sexo com homens.