O que já caminhámos desde a descodificação do genoma humano
Excerto do livro Genética para Todos (Gradiva), da geneticista Heloísa G. Santos e do jurista André Dias Pereira, e que chega esta semana às livrarias portuguesas.
O estudo sistematizado do ADN, que constitui o genoma humano, iniciou- se em 1990. A sua sequenciação progressiva foi realizada através da criação do Human Genome Project (HGP). Este projecto de investigação, principalmente subsidiado e coordenado pelos EUA, incluindo a colaboração do Departamento de Energia, foi apoiado por mais de mil cientistas de outros cinco países, a saber, Reino Unido, França, Alemanha, Japão e China. Foi uma consequência do enorme e crescente entusiasmo científico desencadeado pela descoberta de Watson e Crick da constituição, em dupla hélice, do ADN e, também, por começarem a surgir informações sobre a sequenciação completa de alguns animais e plantas.
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O estudo sistematizado do ADN, que constitui o genoma humano, iniciou- se em 1990. A sua sequenciação progressiva foi realizada através da criação do Human Genome Project (HGP). Este projecto de investigação, principalmente subsidiado e coordenado pelos EUA, incluindo a colaboração do Departamento de Energia, foi apoiado por mais de mil cientistas de outros cinco países, a saber, Reino Unido, França, Alemanha, Japão e China. Foi uma consequência do enorme e crescente entusiasmo científico desencadeado pela descoberta de Watson e Crick da constituição, em dupla hélice, do ADN e, também, por começarem a surgir informações sobre a sequenciação completa de alguns animais e plantas.
Mas não foi fácil iniciar este estudo de cartografia do genoma humano porque os governos receavam gastos astronómicos e pouca utilidade no apoio à saúde dos resultados destas investigações. Inclusive, no Parlamento americano, compararam-se os seus custos a previsíveis despesas com os gastos na construção de novas auto-estradas que alguns parlamentares consideravam muito mais úteis.
Também os fundamentalistas da moral e muitos líderes religiosos temiam estes avanços científicos por recearem o risco incontrolável da evolução dos conhecimentos adquiridos. Afirmavam que iriam conduzir à criação de atitudes e procedimentos que chocariam com regras morais e éticas. Igualmente, receavam que as conclusões pudessem vir a interferir negativamente com conceitos considerados intocáveis, nomeadamente sobre o determinismo e o papel único de Deus na criação do Homem. É interessante salientar que Francis Collins, o cientista americano que liderou o HGP, o grupo internacional que sequenciou a quase totalidade do nosso genoma, é profundamente religioso e nunca concordou com esta visão conflituosa. Em 2000, no discurso que pronunciou na Casa Branca, a convite de Clinton, aquando da cerimónia realizada para assinalar o fim próximo da sequenciação do genoma humano, afirmou que tinham tido o privilégio de abrir um livro de instruções que, previamente, era apenas conhecido por Deus.
Não acompanhando a indecisão dos poderes públicos e a crítica de sectores mais conservadores ou religiosos da sociedade, poderosos grupos económicos, muitos constituindo lobbies associados a empresas multinacionais farmacêuticas e de biotecnologia, interpretaram de forma mais abrangente a linguagem dos cientistas e compreenderam o enorme interesse desta iniciativa. Perceberam rapidamente que traria melhor compreensão dos principais mecanismos de controlo da saúde e da doença no Homem e consequente rápida melhoria dos diagnósticos e das terapêuticas medicamentosas e aliaram-se aos cientistas, tendo-se introduzido, sem qualquer dificuldade, como principais financiadores.
Esta parceria, aparentemente muito vantajosa e determinante, criou, no entanto, alguns desvios ético-científicos que, se mantêm ainda hoje. É o caso da criação de patentes associadas a descobertas e não apenas a invenções e da habitual opção de ser dada prioridade às investigações que possam vir a satisfazer os interesses próprios do financiador numa perspectiva de posteriores lucros financeiros. Um bom exemplo é a prioridade que é dada à pesquisa em cancro, nas doenças cardiovasculares, na diabetes comum, situações de doença frequentes em países ricos, versus o paludismo, frequente em países pobres, ou o menor interesse demonstrado no apoio ao estudo e terapêutica das doenças muito raras. Estas, que contam ultimamente com o apoio à investigação e à terapêutica dos governos da Europa e EUA, receberam um nome que está relacionado com esta atitude de desinteresse relativo – doenças órfãs. Porém, com este quase total patrocínio financeiro, o desenvolvimento da investigação tem sido, como nunca, apoiado e incentivado.
Entre outras importantes vantagens, foram expressamente desenvolvidos métodos de apoio de bioinformática, criaram-se programas adequados e instrumentos automáticos específicos (sequenciadores e outros sistemas de leitura e interpretação de resultados).
A rápida optimização das condições de trabalho facilitou o acesso e interpretação das características moleculares das diferentes regiões do genoma que foram sendo progressivamente “arrumadas” de forma sequencial, ou seja, sequenciadas. E, com enorme surpresa, em 2000, com grande antecipação em relação ao previsto ano de 2003 (homenagem aos 50 anos da descoberta da dupla hélice), o mundo foi informado pelo presidente dos EUA (Bill Clinton), na Casa Branca, que a sequenciação do genoma humano estava praticamente terminada. Esta cerimónia, com carácter político, teve a participação, por videoconferência, de Tony Blair, o primeiro-ministro do Reino Unido, dada a relativa importância da participação deste país (em Cambridge, John Soulston, recentemente falecido, e colaboradores, realizaram sozinhos cerca de um terço da sequenciação). Clinton encontrava-se ladeado pelos dois principais geneticistas e cientistas dos EUA envolvidos na sequenciação – Collins e Venter.
Francis Collins é geneticista médico e conceituado cientista americano que, como director do National Center for Human Genome Research Institute, coordenou e liderou o referido HGP. É hoje o poderoso director dos National Institutes of Health (NIH), organismo que orienta e financia a investigação médica nos EUA.
Craig Venter é bioquímico e tem grande experiência em técnicas de biotecnologia, tendo criado em 1990, após abandonar o projecto público, a empresa privada Celera Genomics, que coordena. Este homem, extremamente inteligente, que se diz fascinado pela ciência mas amante do desporto e de uma vida de luxo, com um percurso académico fora do comum (foi militar da Marinha na guerra do Vietname), pretendeu antecipar-se na descoberta dos fragmentos desconhecidos do genoma para criar valiosas patentes, inclusivamente antes de se conhecer o papel dos genes descobertos. Contou com a oposição de James Watson, na época o anterior director do National Center for Human Genome Research Institute, criado pelo NIH, do qual, por a sua intransigente posição em relação às patentes não ter sido aceite, acabou por se demitir.
A empresa Celera encontrava-se integrada num poderoso grupo, Applied Biosystems, responsável pela criação de novas máquinas automáticas para sequenciação. Este investigador propôs um método alternativo de sequenciação do genoma humano, o whole genome shotgun. Este método, que decifra o ADN em pequenos fragmentos aleatórios e de forma não sistematizada, era um substituto oportuno do mais moroso método clássico de Sanger, que estava a ser utilizado pelos investigadores do HGP – e, assim, este investigador pretendeu competir com o próprio HGP na finalização do projecto de sequenciação. Posteriormente, criou uma réplica duma célula bacteriana com ADN artificial e tem sido o protagonista de muitos outros avanços ligados às novas biotecnologias e à robótica. Em 2007-2008, com James Watson, participou no projecto de estudo de 1000 genomas com o objectivo de caracterizar e interpretar melhor os conhecimentos existentes sobre o genoma humano para se poder avançar posteriormente para o estudo genómico personalizado. Além disso, encontra-se hoje associado à análise genómica de grandes grupos populacionais apoiando-se em multinacionais farmacêuticas e de bioinformática nos chamados Big Data. Há um ano, a divisão britânica da Glaxosmithkline assinou com ele um contrato para a sequenciação de dois milhões de pessoas no Reino Unido durante os dez anos seguintes.
Os objectivos mercantilistas de Venter, e de tantos outros geneticistas (e a sua íntima relação financeira com as grandes companhias privadas), têm como consequência uma progressiva perda do idealismo inicial no conhecimento do genoma e criaram uma perigosa deriva na independência da investigação e no apoio aos doentes.
Esta transformação foi denunciada, de forma implacável, em 2002, por John Soulston, Prémio Nobel e director do Sanger Centre de Cambridge, centro responsável por grande parte da sequenciação do genoma humano. Este investigador afirmou que, ao longo dos anos, a ética na ciência tem diminuído e relacionou este facto principalmente com os poderosos interesses económicos e políticos em jogo.
Graças à visão, predominantemente comercial, da necessidade de existirem patentes em simples descobertas, foi durante muito tempo negado o acesso aos dois mais importantes genes do cancro da mama hereditário, o BRCA1 e o BRCA2, que também podem causar cancro nos ovários de muito difícil detecção clínica. O rastreio destes genes, embora sem grandes dificuldades técnicas, foi monopólio, até 2013, da companhia americana Myriad Genetics. O preço da realização destes testes genéticos, muito inflacionado por esta empresa detentora da patente, impediu durante muitos anos, nos EUA e na Europa, a realização generalizada de diagnóstico molecular precoce e de prevenção atempada destas duas formas de cancro, de transmissão autossómica dominante, nas filhas ou outros familiares das mulheres atingidas por estas patologias. As associações internacionais de doentes e de médicos geneticistas, recusando aceitar esta situação e levando muitas vezes a companhia aos tribunais americanos e europeus, tiveram um papel determinante na modificação desta conduta de manutenção da patente e da exclusividade da realização destes testes genéticos relacionados com formas muito graves de cancro mamário.
O principal argumento apresentado por esta e outras empresas comerciais, ao defenderem a obtenção de patentes, não apenas para invenções, mas também para simples descobertas, é a necessidade de obtenção de elevados lucros para que possam continuar a promover a investigação e a produzir inovação. Afirmam, ainda, que a aquisição de maior capacidade científica sobre as acções dos genes patenteados só será possível se mantiverem também ao seu dispor os estudos moleculares diagnósticos.
Nos últimos anos, temos assistido ao aprofundamento de todos os conhecimentos, através do desenvolvimento de novas técnicas de diagnóstico e de novas áreas de investigação. Desenvolvem-se novos estudos que avaliam separadamente os efeitos das proteínas produzidas por cada gene (proteómica), dos fenómenos epigenéticos (epigenómica) e muitas outras. Está igualmente a ser avaliado o decisivo papel do ARN (ácido ribonucleico) no genoma humano e, também, no genoma dos restantes seres vivos.
Actualmente, é evidente que muitas doenças genéticas raras são causadas alternativamente por diferentes genes que poderão ser investigados de forma simultânea e já é possível a construção de painéis para o diagnóstico de muitas doenças. Estes painéis genéticos analisam simultaneamente os vários genes relacionados com a patologia específica, melhorando a eficácia e diminuindo o custo e o tempo da resposta diagnóstica.
Nas doenças mendelianas, o maior ou menor efeito no fenótipo depende, muitas vezes, não apenas de um gene, mas do tipo da alteração e do seu mecanismo de produção da alteração – e estes pormenores também estão a ser exaustivamente analisados.
É, contudo, menos conhecida a acção das diferentes variações genéticas no aparecimento de muitas doenças comuns (cancros, doenças cardiovasculares, diabetes, doenças neurológicas incluindo demências, doenças imuno-alérgicas e outras) porque se sabe que as variações desencadeantes destas doenças são diferentes de acordo com a origem das populações ou, até, das famílias. Por outro lado, os estudos científicos já publicados ainda apresentam informações discrepantes, naturalmente porque utilizam diferentes métodos e têm amostras reduzidas e heterogéneas da população em estudo. Este grave problema, que vai exigir, mais uma vez, a cooperação internacional dos geneticistas e restantes cientistas, está a ser já avaliado e acredita-se que será progressivamente ultrapassado através de estudos alargados do genoma de populações, os já iniciados Big Data.
Nestes estudos dos Big Data, a sequenciação genómica é realizada em milhões de pessoas, em princípio dadores voluntários, e as condições de realização e interpretação informática dos dados obtidos estão a ser uniformizadas.
Além de avaliarem situações de doença, estes estudos pretendem, através do mais rigoroso, uniforme e completo estudo do genoma humano, criar melhores formas de prevenção genética e, ainda, obter novas armas terapêuticas e compreender o desenrolar dos processos fisiológicos normais com o objectivo de melhorar a qualidade e duração de vida do Homem. Referimo-nos, especialmente, aos estudos que envolvem o cérebro e o sistema nervoso central, em que o papel dos genes e da sua eventual modificação na melhoria das funções superiores é um importante objectivo, mas também ao processo de envelhecimento, incluindo a frequente situação de demência e as suas causas. O processo normal do desenvolvimento no embrião é, igualmente, objecto de muita investigação.
Foi na Islândia, país com menos de 350.000 habitantes, que se realizaram pela primeira vez estudos completos da população. Contudo, a empresa DeCode obteve previamente a autorização do Parlamento para realizar este projecto de investigação científica e tem pago uma elevada quantia pela colaboração obtida. Têm estado a ser publicadas, nomeadamente na revista Nature Genetics, muitas conclusões importantes de diferentes investigações resultantes deste estudo da sequenciação genómica completa dos voluntários islandeses e que foi acompanhado de minucioso estudo das suas árvores genealógicas.
A farmacogenómica (análise do genoma humano com o objectivo de determinar como os fármacos actuam a nível individual e encontrar fundamentos genómicos para criar medicamentos mais eficazes) tem acompanhado este progresso científico e, principalmente na área do cancro, sucedem-se as novas terapias. Nos EUA, calcula-se que morram anualmente mais de 100.000 pessoas devido a acções adversas do apoio terapêutico.
As tentativas de terapia directa das doenças genéticas por modificação dos genes alterados (genoterapia) iniciaram-se nos anos 90, utilizando retrovírus para introduzir genes normais no ADN dos doentes e com o apoio de enzimas de restrição para cortar o ADN em locais específicos.
O primeiro ensaio clínico foi realizado em 1990, nos EUA, no NIH, em Bethesda, Maryland, numa menina com uma doença genética recessiva que provoca a síndrome de imunodeficiência congénita combinada, resultante da ausência de produção de uma enzima ADA (adenosina deaminase). Nela foi introduzida uma infusão das suas próprias células (linfócitos T) suplementadas no exterior (in vitro) com o gene normal através dum vector (retrovírus). Esta e outros doentes, que tinham de permanecer isolados para sobreviver porque morriam com a mínima infecção (meninos “bolha”), iniciaram uma vida normal apenas com a administração periódica destas infusões. O êxito destes primeiros casos levou a novas tentativas, incluindo noutras patologias que, contudo, não conheceram sucesso. Quatro crianças faleceram com leucemia após o retrovírus que lhes foi introduzido se ter instalado num local onde, por proximidade, estimulou proto-oncogenes, que são genes que quando sofrem alterações contribuem para o aparecimento de cancro. Em 1999, um jovem de 18 anos, voluntário num ensaio terapêutico, faleceu após tentar a cura duma doença metabólica – défice de ornitiltranscarbamiltransferase (OTC) – para a qual estava a ser tratado com alguma eficácia através de métodos clássicos sintomáticos. O adenovírus, introduzido no fígado como vector do gene produtor da enzima deficiente, espalhou-se de forma incontrolável pelos órgãos e originou uma infecção generalizada da qual este rapaz veio a falecer.
A edição do genoma é uma nova técnica de manipulação programada do genoma, através do sistema CRISPR/Cas9, que pode ser utilizada em vários domínios da ciência, incluindo a terapia génica de doenças monogénicas. Em 2012, Jennifer Doudna e Emanuelle Charpentier, duas investigadoras da Universidade de Berkeley (Califórnia), verificaram e informaram a comunidade científica de que se podia utilizar em células eucariotas (com núcleo, como as nossas) um mecanismo imunológico identificado em bactérias pelo qual estas se tornam capazes de se libertar dos vírus quando estes se introduzem no seu genoma. Este novo instrumento é constituído por uma enzima bacteriana (Cas9) que corta as duas cadeias da molécula de ADN como uma tesoura e por um segmento de ARN (CRISPR) que actua como guia, identificando o local onde é necessário que o genoma seja alterado e onde será colocada a nova sequência do ADN. O ARN é obtido através de firmas comerciais.
A forma como esta cirurgia molecular é realizada (não utilizando um vírus como vector) torna-a menos arriscada do que as tentativas anteriores de manipulação do genoma. Tem sido publicitada como sendo de muito simples realização e não muito onerosa. Porém, já começaram a surgir alguns efeitos negativos e, em Outubro de 2017, foi adoptada uma recomendação do Parlamento Europeu para a realização de um debate e a adopção de rápidas medidas do foro ético e legais pelo Comité de Bioética do Conselho da Europa. Em Dezembro de 2015 a Academia de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA já tinha exigido medidas semelhantes e considerava que este método só deveria ser utilizado em casos muito graves e em situações excepcionais. Contudo, na China, já nasceram duas irmãs às quais um cientista, agindo aparentemente de forma isolada, He Jiankui, aplicou esta técnica. Alterou os dois embriões através da edição de genoma para modificar o gene CCR5 e os tornar resistentes ao vírus HIV. E, podemos imaginar, mais casos se seguirão.