A ecologia resolve-se com mudanças de hábitos individuais?
Passamos o tempo a dizer uns aos outros que temos de mudar práticas, mas em nenhum momento questionamos se é possível alterar os fundamentos que as motivam.
São uma autêntica praga, disse ela. A senhora olhava para mim com ar profundamente reprovador, depois de perceber que era de plástico, a palhinha que havia solicitado ao empregado do café, a pedido da minha filha de três anos para beber um sumo, fazendo-me sentir culpado.
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São uma autêntica praga, disse ela. A senhora olhava para mim com ar profundamente reprovador, depois de perceber que era de plástico, a palhinha que havia solicitado ao empregado do café, a pedido da minha filha de três anos para beber um sumo, fazendo-me sentir culpado.
E encetámos conversa. Para ela, era tudo uma questão cultural. Havia que mudar de condutas. O plástico estava a provocar danos graves no ambiente e havia que fazer alguma coisa. E a censura social era relevante nesse processo. Não discordei dela. Disse-lhe até que, no meu tempo de vida, se tinha havido assunto em que presenciei alterações comportamentais relevantes foi na relação com o meio ambiente.
Mas o drama era precisamente esse. Apesar das modificações de hábitos individualizadas das últimas décadas, no sentido de uma maior consciência ecológica, incentivando os cidadãos a não utilizar plásticos, a separar lixos, a consumir biológico, a racionar água e tantas outras coisas, a degradação ambiental não estancou. Daí que seja defensável pensar que para haver uma inversão terão de ser implementadas mudanças mais radicais. E essas só podem ser políticas e supranacionais, forma de protegermos bens naturais ou culturais.
Quando disse isto, ela ripostou que as duas lógicas são complementares e mais vale fazer alguma coisa do que nada. Certo. A questão é que, no espaço público, na imprensa, nas conversas informais ou nas narrativas políticas e institucionais, é a responsabilização particular que prevalece. Para os cidadãos, parece ser uma forma de purificarem a consciência por aceitarem um estilo de vida que danifica o ambiente. E para os Estados ou grandes corporações, que poderiam fazer a diferença, é uma maneira de partilharem responsabilidades, diluindo assim a culpa.
Hoje, quando soam todos os alarmes para o aquecimento global, é degradante perceber que as grandes potências não conseguem chegar a acordos mínimos sobre o assunto. E falamos dos mesmos Estados que face à crise de 2008 decretaram urgência absoluta na canalização de milhares de milhões para que o sistema financeiro não se afundasse.
O problema é que a economia não fala a mesma língua que a ecologia. A economia impõe um modelo de desenvolvimento global onde a exploração dos recursos naturais vai prevalecendo, incapaz de reenquadrar-se no sentido da defesa do bem comum em torno do clima, da água ou da biodiversidade, enquanto a ecologia clama pela protecção dos equilíbrios dessa mesma natureza, quando estes já foram largamente postos em causa pela acção dos seres humanos. No meio deste diálogo de surdos, as nossas iniciativas individuais são bem-intencionadas e valem como alerta, mas não têm grande eficácia.
O foco tem de ser o combate político. Caso contrário, o risco é esta ecologia moral ser uma espécie de panaceia que nos distrai colectivamente, forma de não serem enfrentados os reais problemas, transferindo e individualizando a questão, fazendo crer que tudo se resolve com a acção consciente do consumidor, sem que interroguemos a própria raiz do sistema, a cadeia de produção e consumo, o papel das grandes empresas, do capital globalizado e do Estado na regulação.
Passamos o tempo a dizer uns aos outros que temos de mudar práticas, mas em nenhum momento questionamos se é possível alterar os fundamentos que as motivam. Agimos sobre as consequências e nunca sobre as causas. E a prova tive-a no regresso a casa, depois da conversa de café, ao ver a minha vizinha atrapalhada, sentindo o meu olhar, quando retirou um saco de plástico para apanhar os dejectos do cão. Não lhe disse nada. Mas ela de imediato quis absolver-se, fornecendo-me toda uma panóplia de alternativas ao plástico que já existem, como umas sacolas feitas de material reciclado que se decompõem facilmente.
Ainda pensei dizer-lhe que havia uma alternativa ainda mais sustentável que era utilizar as folhas grandes que caiam das árvores naquele momento, mas calei-me. Seria arranjar apenas mais um subterfúgio.