Alceste, ou a pura emoção: um drama para todos de volta ao São Carlos
Nova produção da ópera de Gluck tem Ana Quintans no papel principal e encenação de Graham Vick, que regressa ao Teatro Nacional de São Carlos depois de ali ter feito a tetralogia O Anel dos Nibelungos, Werther e Anna Bolena.
No prefácio à partitura de Alceste, o compositor, Christoph Willibald Gluck, sentiu necessidade de se explicar: “Quando me dispus a escrever a música para Alceste, decidi despojá-la completamente de todos os abusos que, introduzidos pela vaidade enganadora dos cantores ou pela excessiva condescendência dos compositores, há muito têm vindo a desfigurar a ópera italiana e a transformar o mais importante e belo de todos os espectáculos no mais ridículo e entediante. Procurei restringir a música à sua verdadeira função, nomeadamente, valorizar a expressão poética e a situação subjacente, sem interromper, porém, a acção ou a sufocar com ornamentações supérfluas e inúteis.”
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No prefácio à partitura de Alceste, o compositor, Christoph Willibald Gluck, sentiu necessidade de se explicar: “Quando me dispus a escrever a música para Alceste, decidi despojá-la completamente de todos os abusos que, introduzidos pela vaidade enganadora dos cantores ou pela excessiva condescendência dos compositores, há muito têm vindo a desfigurar a ópera italiana e a transformar o mais importante e belo de todos os espectáculos no mais ridículo e entediante. Procurei restringir a música à sua verdadeira função, nomeadamente, valorizar a expressão poética e a situação subjacente, sem interromper, porém, a acção ou a sufocar com ornamentações supérfluas e inúteis.”
Embora historicamente importante, não é este manifesto reformista que hoje atrai o público a esta ópera. Quando a presenciarmos a partir deste sábado no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, e até ao dia 27 de Janeiro, em nova produção baseada na versão francesa de 1776, aquilo que irá sobressair será, nas palavras do encenador Graham Vick, “a enorme quantidade de drama, de teatro cheio de humanidade, de tudo aquilo que somos e de como somos”.
O libreto, baseado numa antiga tragédia de Eurípedes, conta uma história muito curta: Admeto, rei da cidade grega de Feras, só podia escapar à morte determinada pelos deuses se alguém morresse em seu lugar; Alceste, sua esposa, propõe-se fazer esse sacrifício por ele; o rei, ao saber disso, disputa sem êxito com Alceste o direito a morrer; no final Alceste acaba por ser salva por Hércules, e o casal reencontra a felicidade. A progressão dramática é inevitavelmente lenta, com cada momento emocional, negro ou ligeiro, mais público ou mais íntimo, a ser saboreado artisticamente com uma calma que hoje raramente nos permitimos oferecer a nós próprios.
É verdade, admite Vick, que “o enredo é magro; mas há uma subtileza psicológica muitíssimo sofisticada” na relação entre os personagens principais. E há, é claro, a música: “Ainda mais bela e extraordinária do que me lembrava.” Na verdade, confessa o encenador: “Há trinta anos que queria encenar esta ópera, e estou imensamente feliz [com o resultado], pelo que consegui e pelo que conseguiram todos os artistas envolvidos.”
O segredo é transformar uma história de reis e de deuses distantes, passada em épocas remotas, em algo de familiar. “Não sabemos como era a vivência de uma família real, mas sabemos o que é a família, o que é amar os filhos, o que é o amor.” Poderíamos acrescentar: sabemos o que é o sofrimento por amor, a renúncia por amor.
Os figurinos são roupa do dia-a-dia; os adereços, minimalistas, aproximam-nos do dia-a-dia; Hércules é retratado como um super-herói da cultura popular. “Não sabemos pensar Apolo, mas sabemos pensar um deus que desce à terra, que pisa o chão descalço. Todos aqui pisam o chão descalços, é um sinal de que temos algo em comum: isto nivela reis, povo, deuses. De facto, o deus da Luz surge sobre a terra empurrando um painel de luzes, misturado com o povo, mas só no fim do 3.º acto essa presença e essa proximidade são reveladas; não surge ex machina. Esta ópera quer incluir todos, falar a todos.”
Entre os admiradores da encenação estão os próprios artistas participantes, que trabalharam na sua montagem em palco durante seis semanas — um período invulgarmente longo que permitiu tirar partido das potencialidades cénicas tanto do coro como dos solistas. A cantora a quem coube desempenhar o papel principal de Alceste, Ana Quintans, está a adorar a experiência. “Inicialmente hesitei muito em aceitar o papel, tinha alguns preconceitos, baseados na audição de gravações antigas ou mesmo em opiniões de colegas. É um papel brutalmente exigente e cansativo, com sete árias, um dueto, um terceto e números de conjunto. Nunca tinha feito um papel tão grande, mas o Graham Vick acabou por me convencer e estou muito, muito feliz por ter aceitado”, diz.
“É um luxo trabalhar com esta equipa, dou-me lindamente com o Leonardo [o tenor Leonardo Cortellazzi, no papel de Admeto]. É tudo muito difícil, mas o maestro é muito experiente e consegue lidar com as dificuldades, com as constantes mudanças de andamento, e em sintonia com o encenador.” Graeme Jenkins, como director musical, confia em Graham Vick "porque se preparou para ser maestro. Sabe o que quer ouvir musicalmente e é muito exigente. Embora trabalhe muito sobre o texto, já o trabalha com intenção musical.”
“Eu já sabia que era um trabalho minucioso a partir do texto, e é assim que gosto de trabalhar. É preciso desbravar [o terreno], mesmo que se dêem muitas voltas para se chegar à verdade das emoções”, prossegue a cantora. Ainda assim há muitos problemas a vencer: “O canto obriga a uma disciplina, um rigor, que é difícil conciliar com a procura da intensidade [emocional].” Nos ensaios, enquanto se procura essa verdade, “é preciso criar alguma distância”. Há as incógnitas do posicionamento acústico, ou da contorção corporal: “Vamos experimentando.” E também é muito árduo cantar um tom acima do diapasão francês usado no tempo de Gluck: “Torna-se difícil gerir a tensão, dificulta a dicção, torna tudo mais complicado.” No entanto, Ana Quintans está muito satisfeita com este papel: “Não é todos os dias que se tem uma oportunidade como esta, que também me ajuda a perceber até onde posso ir vocalmente. Sinto agora que posso fazer mais repertório clássico, para além do barroco que faço habitualmente.”
Berlioz, grande admirador de Alceste, opinou em 1861 que “nas obras de Gluck requer-se, para além de absoluta fidelidade – no canto, no ritmo, nas inflexões, em tudo –, um estilo no fraseado, prestar atenção às subtilezas e à clareza da dicção. Sem estes requisitos, a divina flor da expressão que torna estas obras tão comoventes perde a sua cor e perfume (...) Na sua época, os coros não representavam (...). Foi Gluck quem tentou insuflar-lhes vida, mostrando-lhes que gestos e movimentos deveriam fazer”.
A presente produção, a avaliar pelo ensaio geral a que assistimos, tem tudo isso — rigor, estilo a condizer, boa dicção; emoção, muito movimento coral, dança, encenação musicalmente consciente. São três horas de plácido reencontro com um enorme leque de sentimentos. Parafraseando o padre Arnauld, citado por Berlioz, pode dizer-se que este Alceste caiu na terra em São Carlos, sim — mas vindo do céu.