A “Justiça” mais injusta: ISDS, a arma exclusiva dos poderosos
Até ao momento, o absurdo deste mecanismo é inversamente proporcional ao grau do seu conhecimento pelos cidadãos, que dele sofrem as brutais consequências.
Custa a acreditar que precisamente aos mais poderosos actores privados globais sejam outorgados direitos superiores, especiais e exclusivos, que lhes permitem exigir indemnizações multimilionárias sempre que consideram que medidas democraticamente adoptadas pelos Estados podem diminuir os seus lucros.
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Custa a acreditar que precisamente aos mais poderosos actores privados globais sejam outorgados direitos superiores, especiais e exclusivos, que lhes permitem exigir indemnizações multimilionárias sempre que consideram que medidas democraticamente adoptadas pelos Estados podem diminuir os seus lucros.
E não menos inconcebível parece que sejam precisamente os Estados a outorgar-lhes esses direitos e meios especiais, limitando o seu próprio poder legislativo e arriscando, em dimensão multimilionária, os recursos dos cidadãos.
Mas é exactamente isso que vem acontecendo de forma crescente e avassaladora através do ISDS (sigla em inglês do Investor-State Dispute Settlement), um instrumento de direito internacional privado, disponível exclusivamente para investidores estrangeiros processarem Estados e a que estes livremente se submetem, entre outros, através de acordos de investimento ou, por exemplo, da Carta da Energia, que Portugal também subscreveu.
A partir dos finais de 1960, o ISDS começou a ser incluído em acordos de investimento entre países, com o objectivo de proteger os investimentos privados em países ditatoriais ou corruptos. Nos primeiros 20 anos, os processos de ISDS foram raros; mas, a partir de 1990, o seu aumento foi vertiginoso, sendo hoje conhecidos mais de 560 casos a nível mundial. O que era uma excepção passou a ser um privilégio generalizado, incluído em acordos entre países democráticos onde rege o Estado de Direito – como aconteceu recentemente no acordo de comércio e investimento entre a União Europeia (UE) e o Canadá (mais conhecido por CETA).
A nível substancial, as empresas multinacionais passaram assim a beneficiar de direitos especiais e exclusivos, entre outros, através do conceito de “expropriação indirecta”. Este conceito não está ancorado na legislação nacional de muitos países, como, por exemplo, a Alemanha. Porém, recorrendo ao ISDS quando considerem que decisões legislativas dos Estados podem reduzir os seus lucros “legitimamente expectáveis”, os investidores estrangeiros – e apenas estes – podem transpor a justiça nacional e accionar essa justiça “superior”.
O inconcebível deste mecanismo não se limita, porém, à sua vertente substancial. Em termos processuais, a decisão não é tomada por um tribunal público e legitimado, mas por tribunais arbitrais privados, compostos por três árbitros escolhidos pelas partes – de entre um pequeno grupo de advogados ou juristas pagos com valores de $1000 à hora – e que podem assumir rotativamente o papel de acusação, defesa ou de decisão. As sessões são secretas (muitas vezes realizadas em quartos de hotel) e das decisões não há apelo possível, não existindo uma instância de recurso.
As custas de um processo ISDS são, em média, de oito milhões de euros – mesmo nos casos em que os Estados ganham os processos. Quando a decisão penaliza os Estados, o pagamento de indemnizações às grandes empresas chega aos milhares de milhões.
Mas o efeito dos ISDS vai mais longe ainda, pois a simples possibilidade de virem a ser processados por decisões regulatórias em defesa do consumidor ou do ambiente, dos direitos dos trabalhadores, etc., abre a porta ao chamado chilling effect, o efeito intimidatório sobre o próprio processo democrático.
Os casos de ISDS são pouco conhecidos, em parte por se processarem à porta fechada. O da Philip Morris International contra o Uruguai por políticas anti-tabaco, ou da empresa sueca Vattenfall contra o governo alemão pela decisão de abandonar a energia nuclear (exigindo uma indemnização de 4,7 mil milhões de euros) são apenas exemplos pontuais. Em Portugal, os accionistas da EDP anunciaram recentemente que iriam, via ISDS, contestar uma redução das chamadas “rendas excessivas”, no valor de 285 milhões de euros.
A gritante injustiça deste sistema paralelo e exclusivo já levou o Parlamento Europeu (PE) a tomar uma posição clara contra o ISDS e o tribunal europeu pronunciou-se sobre a falta de conformidade do ISDS com o direito europeu, a nível de processos entre os Estados-membros. Até a Comissão Europeia, defensora do sistema, acabou por adoptar um sistema cosmeticamente melhorado no CETA, em troca de o conseguir passar no PE.
O movimento europeu de cidadãos contra o ISDS, que ganhou força em finais de 2014 no contexto do planeado acordo de comércio e investimento entre a UE e os Estados Unidos da América (TTIP), prepara agora uma campanha para dar visibilidade à marcante injustiça do ISDS.
Porque, até ao momento, o absurdo deste mecanismo é inversamente proporcional ao grau do seu conhecimento pelos cidadãos, que dele sofrem as brutais consequências.