Apoio às artes: um modelo em construção
Esta é uma nova etapa de um processo a continuar em concertação com todas as partes.
Embora indignada ainda com a minha demissão, que o ex-ministro Castro Mendes anunciou em Maio com base numa reportagem televisiva distorcida, sinto-me no dever de contribuir para a reflexão sobre os apoios às artes.
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Embora indignada ainda com a minha demissão, que o ex-ministro Castro Mendes anunciou em Maio com base numa reportagem televisiva distorcida, sinto-me no dever de contribuir para a reflexão sobre os apoios às artes.
Comecei a preparar a revisão do modelo estatal de financiamento em 2016, com planos, diagnósticos e propostas; participei na auscultação do sector que levou à publicação do Decreto-Lei 103/2017 e das Portarias 301/2017 e 302/2017; e em Outubro abri os concursos para apoio sustentado às entidades com actividade regular de 2018 a 2021.
O procedimento era inédito porque não se concorria a nível nacional há nove anos, com as mesmas regras, e candidaturas melhores e mais diversas. O tempo para assimilar novas regras foi curto e os resultados geraram grande contestação. Na maioria o apoio por entidade cresceu; mas o orçamento não foi suficiente e ficaram à margem várias entidades com sólido historial de apoios e, como já acontecera, havia projectos em acção e compromissos assumidos com pessoal e equipamentos.
O Governo reforçou o orçamento e prometeu rever o modelo a curto prazo com um Grupo de Trabalho qualificado e representativo. O Ministério da Cultura atendeu às propostas consensuais, que incidem em 7 artigos do Regulamento dos Programas de Apoio às Artes e 3 artigos do Regulamento das Comissões de Apreciação e Avaliação. Proponho-me analisar o que implicam essas alterações, que estão em consulta pública desde 21 de Dezembro.
Há muito que os agentes culturais reclamam decisões atempadas. Agora, o calendário de selecção do apoio sustentado tem de garantir a assinatura de contratos com a DGArtes no último trimestre do ano anterior ao ciclo de apoio. Esta é uma alteração fundamental, que exige abrir concursos até Maio, e revela um compromisso definitivo com a estabilidade e organização do sector. No programa de apoio a projectos será obrigatório firmar o contrato até 15 dias antes do seu início; mas como o calendário dos projectos é imprevisível, esta regra tem um defeito: para cumprir, os serviços têm de recusar actividades anteriores ao prazo estimado para resultados finais.
Na classificação das candidaturas do apoio sustentado destacam-se quatro alterações: 1. na ponderação dos critérios a “qualidade artística do projecto” sobe para 50%, decrescendo para 7,5% a “repercussão social” e a “correspondência aos objectivos (...)”; 2. a classificação mínima de 60% por critério já não é requerida para ser elegível; 3. a avaliação das comissões que acompanham deixa de ter impacto na apreciação; e 4. a discriminação positiva das candidaturas que comprovassem parcerias com a administração local é revogada. No programa de apoio a projectos também mudam ponderações, mas o requisito de elegibilidade de 60% por critério mantém-se e é eliminado o critério “alcance” que, tal como a “repercussão social” no apoio sustentado, abrange a qualidade e quantidade de públicos fruidores ou participantes, acções de desenvolvimento e estratégias de comunicação. Temo que esta viragem prejudique as entidades que investem nas periferias (geográficas, sociais ou artísticas), que dependem mais da valorização política e social da cultura para se legitimarem e para agirem em contextos com menor fluxo de recursos ou qualificações.
A primazia da qualidade artística é inquestionável. Mas este é o mais subjectivo dos critérios, dependente de juízos estéticos naturalmente disputáveis e adversos à objectividade dos concursos da administração pública. Desvalorizar a correspondência aos objectivos dos apoios é desvalorizar o serviço público que subjaz ao investimento do Estado e a uma política nacional em sintonia com tendências europeias e recomendações mundiais. Reduzir ou eliminar a importância da repercussão social do trabalho dos agentes culturais contraria a necessidade de democratizar o acesso e cultivar a diversidade e a inclusão. O Grupo de Trabalho propunha cingir o critério à programação; mas a responsabilidade pelo lastro social da actividade artística não acaba nesse domínio, pois nem as companhias de criação nem os projectos de formação realizam a sua missão sem usufrutuários. Na era da comunicação de massas, e face ao populismo emergente, são de maior importância as estratégias de informação que transmitem as ideias críticas e estéticas das artes na sociedade. Pergunto se, acabando o imperativo dos 60% por critério, é necessário mudar as ponderações que produziam uma apreciação mais equilibrada.
A valorização de relações estratégicas garantidas pretendia concertar o desenvolvimento do sector com a administração local e premiar boas práticas; em princípio, uma negociação sob parâmetros idênticos com os municípios evitaria desigualdades, conflitos ou abandono, que os Acordos Tripartidos do modelo anterior criaram. Finalmente, se as entidades maduras têm pedido para o seu desempenho se reflectir na apreciação de novas candidaturas, porquê erradicar uma forma transparente de traduzir o acompanhamento das comissões numa avaliação consequente para o futuro?
No DL 103/2017, que ficou por tratar, há que rever quem se pode candidatar e porquê. O actual perfil de entidades exclui, e bem, instituições públicas ou financiadas pela Cultura; mas permite incluir programas de bandeira municipal e dificulta o acesso a artistas e grupos informais associados a centros de investigação e outras entidades privadas. Faltam incentivos à descentralização, como o funcionamento em redes territoriais e a fixação de projectos em áreas desprovidas.
Nas apresentações pelo país com o Secretário de Estado Miguel Honrado, defendi que o modelo não se esgota na legislação. Na declaração de apoios 2019, vejo vontades elencadas no Estudo do Posicionamento das Entidades Artísticas (do CIES, em 2017). Os orçamentos, avisos de aberturas, formulários e comissões de apreciação são outras peças chave de uma política de democracia cultural. A realização do modelo depende também da saúde da DGArtes; uma matéria para outro dia, que espero encontrar nos debates sobre as políticas culturais da próxima legislatura.