31.661, tatuado no braço
Uma obra maior da “literatura do Holocausto”: Auschwitz e Depois, de Charlotte Delbo.
Em grego, a palavra “testemunho” diz-se martis, mártir, como assinala Giorgio Agamben no ensaio que em 1998 dedicou a Auschwitz e à sua memória. Muitos consideram, todavia, que tratar as vítimas dos nazis como mártires é atraiçoar a sua condição e o seu destino, mas Agamben observa, e bem, que se o martírio dos primeiros cristãos causava escândalo, por ser uma morte sem propósito (sine causa), também a morte nos campos nazis se afigura desprovida de qualquer sentido – e é essa absoluta ausência de sentido que constitui a sua característica essencial e que permite a aproximação do extermínio nos campos nazis à ideia de martírio. Aliás, o conceito e a expressão “Holocausto” (do grego, holokaustos) surgem precisamente desta necessidade inconsciente de encontrar um sentido para o que se mostra totalmente destituído dele, a morte processada a uma escala industrial sem precedentes, ao ritmo de 15 mil pessoas por dia, segundo uma investigação recente que concluiu que um quarto do total das vítimas do Holocausto morreu em apenas três meses.
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Em grego, a palavra “testemunho” diz-se martis, mártir, como assinala Giorgio Agamben no ensaio que em 1998 dedicou a Auschwitz e à sua memória. Muitos consideram, todavia, que tratar as vítimas dos nazis como mártires é atraiçoar a sua condição e o seu destino, mas Agamben observa, e bem, que se o martírio dos primeiros cristãos causava escândalo, por ser uma morte sem propósito (sine causa), também a morte nos campos nazis se afigura desprovida de qualquer sentido – e é essa absoluta ausência de sentido que constitui a sua característica essencial e que permite a aproximação do extermínio nos campos nazis à ideia de martírio. Aliás, o conceito e a expressão “Holocausto” (do grego, holokaustos) surgem precisamente desta necessidade inconsciente de encontrar um sentido para o que se mostra totalmente destituído dele, a morte processada a uma escala industrial sem precedentes, ao ritmo de 15 mil pessoas por dia, segundo uma investigação recente que concluiu que um quarto do total das vítimas do Holocausto morreu em apenas três meses.
A apreensão do que foi essa tragédia, não necessariamente do seu “sentido”, tem-se feito sobremaneira a partir do testemunho dos sobreviventes, já que, como também refere Giorgio Agamben, uma das maiores razões para sobreviver num campo de concentração era a ténue esperança de um dia poder contar o que ali se passara e se vira, em cumprimento do dever de memória de que fala Primo Levi. Mas, naturalmente, nem todos os testemunhos de Auschwitz apresentam igual valor do ponto de vista histórico ou documental. Raros são os que têm a força expressiva e a qualidade literária de Auschwitz e Depois, da autoria da francesa Charlotte Delbo, uma das mais impressionantes narrativas memorialísticas da experiência dos campos de extermínio, agora publicada numa excelente tradução de Joana Morais Varela. Auschwitz e Depois reúne três textos publicados separadamente ao longo dos anos: Nenhum de nós há-de voltar, saído pela primeira vez em 1965; Um conhecimento inútil, de 1970; e Medida dos nossos dias, editado em 1971.
Como muitos sobreviventes, Charlotte Delbo sentiu que testemunhar era uma das principais, se não a principal, razão para permanecer viva. Filha de migrantes italianos, comunista e militante da Resistência francesa, Charlotte foi presa juntamente com o marido e deportada para Auschwitz-Birkenau em 24 de Janeiro de 1943, num comboio de 229 mulheres, das quais apenas 49 sobreviveram (em 1965, Delbo publicou um livro intitulado precisamente Le convoi du 24 janvier). Antes da guerra, trabalhara como secretária e assistente do encenador Louis Jouvet. Presa e levada para Auschwitz, sobreviverá, segundo disse numa entrevista radiofónica de 1974, graças aos poemas e às peças de teatro que conseguiu reconstituir de memória, e foi durante esse período que teve a ideia salvífica de escrever um dia um livro que, mais do que um relato factual ou um depoimento autobiográfico, fosse uma recolha de situações ou impressões do que via em seu redor. Enviada de Auschwitz para Ravensbrück em Janeiro de 1944, consegue organizar aí algumas representações teatrais feitas a partir da memória de textos de Molière ou Jean Giraudoux. O teatro e a memória serão dois tópicos fundamentais da sua vida no após-guerra e Delbo é, de resto, autora de uma apreciável obra dramatúrgica. Curiosamente, foi em larga medida através da representação teatral dos seus textos sobre o Holocausto, com destaque para Auschwitz e Depois, que o seu nome, apesar de já conhecido, ganhará enorme notoriedade e projecção em França, graças ao trabalho efectuado na década de 1990 pela companhia Bagages de Sable, que, entre outras iniciativas, levou a cabo em 1995 uma leitura pública de trechos de Auschwitz e Depois nas 154 comunas de onde eram originárias as mulheres do comboio que rumou à Polónia em 24 de Janeiro de 1943 – e que entraram em Auschwitz-Birkenau entoando A Marselhesa.
Auschwitz e Depois tem uma extraordinária carga dramatúrgica e, não tendo sido concebido como uma peça teatral, é fortemente tributário dessa paixão de vida de Charlotte Delbo. Surgindo de uma forma esparsa, mas excepcionalmente coerente e com uma clara linearidade temporal (por exemplo, as questões e os dramas do regresso e da sobrevivência avultam na terceira e última parte, Medida dos nossos dias), o livro tem poemas hoje célebres, com realce para Ó vós que sabeis, a par de textos breves que, sob a aparência de “vinhetas”, digamos assim, convocam a atenção do leitor para um detalhe, para uma situação concreta a partir da qual é possível intuir toda a realidade trágica da vida dos campos, como sucede com Até cinquenta (sobre a contagem das bastonadas num prisioneiro) ou O manequim (uma boneca vestida às riscas que os SS usavam para adestrar os cães de guarda). O método de Delbo condensava-se na fórmula Essayez de regarder. Essayez pour voir e é esse olhar aproximativo, tacteante, quase púdico, expresso em frases curtas, cortantes, que torna esta obra absolutamente singular no panorama da “literatura do Holocausto”, sendo de saudar, a todos os títulos, a sua publicação entre nós.
Charlotte Delbo morreu em Paris em Março de 1985. Tatuado no braço, um número: 31.661.