Como James Blake transformou a melancolia em canções com horizonte

Ao quarto álbum, James Blake parece aceitar-se nas suas fragilidades e, rodeado de Rosalía, André 3000, Travis Scott ou Moses Sumney, devolve-nos canções com generosidade e brilhantismo.

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Amanda Charchian

Há cerca de um ano James Blake foi convidado para discursar, nos Estados Unidos, num simpósio sobre saúde mental no contexto da comunidade artística. Falou abertamente sobre a sua experiência com a depressão, revelando ter tido pensamentos suicidas durante as primeiras digressões que realizou.

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Há cerca de um ano James Blake foi convidado para discursar, nos Estados Unidos, num simpósio sobre saúde mental no contexto da comunidade artística. Falou abertamente sobre a sua experiência com a depressão, revelando ter tido pensamentos suicidas durante as primeiras digressões que realizou.

Houve quem percebesse na sua afirmação uma confirmação da ideia de que ele não passa de um criador de música pesarosa. E quem visse no gesto alguém que não teme a tristeza, assumindo que ela faz parte da existência, sendo a partir dessa assunção que pode vir a ser transformada em coisa palpável, orgânica, pacífica, algo possuído de horizonte.

Às tantas disse mesmo que a expressão "rapaz triste", como por vezes é apelidado, esconde uma dose de machismo, como se os homens não se pudessem expressar de forma vulnerável. Foi mesmo mais longe, contrariando o lugar-comum de que a criatividade está intimamente ligada à desordem ou insegurança, argumentando que a sua geração vira muitos artistas perderem-se em lógicas destrutivas e importava corrigi-lo.

Talvez seja excessivo dizer que, quase dez anos depois de ter alcançado visibilidade, numa transição rápida dos circuitos minoritários para a aclamação global, James Blake é hoje, aos 30 anos, um homem feliz. Mas ouvindo o seu novo álbum dir-se-ia pacificado. Pelo menos parece mais consciente de si e da realidade à volta e isso é meio caminho andado para um álbum como Assume Form, o seu quarto longa-duração, onde parece mais confiante do que nunca, sem deixar de expressar melancolia, como se tivesse aceitado que essas cambiantes fazem parte do que o constitui. 

É também o seu disco mais pop e directo, sem deixar o registo minimalista, misto de formas electrónicas mínimas, voz vulnerável, ambientes de uma solenidade com algo de clássico e letras que denotam reflexão sobre as cambiantes relacionais, mas quase sempre de uma forma afirmativa. É um álbum olhos nos olhos, como na foto da capa do disco.

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O seu primeiro registo homónimo de 2011 era maioritariamente composto por temas electrónicos pouco convencionais, com excepções como The wilhelm scream, versão de uma canção do pai, ou Limit to your love, de Feist. No segundo, Overgrown (2013), vislumbrávamos um trovador romântico da era digital que não deixava de lado as cadências electrónicas mais esquizóides, enquanto The Colour Is Anything (2016) se situava algures entre a pop futurista e a ideia mais modelar da canção.

O novo álbum acaba por constituir uma continuação do registo anterior, mas as canções são mais apuradas, os ambientes mais inteligíveis e as emoções espelham alguém que passa por um bom momento existencial, a que não parece ser estranha, afirma ele, a sua vivência na Califórnia nos últimos anos ao lado da namorada, a actriz Jameela Jamil.

É uma obra onde, por um lado, expõe de forma mais vincada a sua veia de compositor clássico, ao mesmo tempo que se abre a uma série de participações exteriores. É verdade que não é a primeira vez que o faz e também não é menos certo que solicitações para cooperações não lhe têm faltado (Beyoncé, Kendrick Lamar, Frank Ocean, Kanye West, Bon Iver, Anderson.Paak), mas é o próprio que tem afirmado que a aprendizagem com outras figuras tem sido essencial.

Em Mile high somos levados por uma lenta batida digitalizada inspirada no hip-hop, na qual o rapper Travis Scott adopta uma vocalização arrastada que entronca na perfeição com os ambientes enevoados, o mesmo sucedendo em Tell them, com a voz em falsete do excelente Moses Sumney em diálogo, numa canção soul oceânica, com tempo e espaço para divagar e nos enlevar, que em vez de entristecer, acaba por envolver.

A colaboração mais inesperada acaba por ser a de Rosalía, que apanhou muita gente desprevenida o ano passado com o álbum El Mal Querer. Mas é uma surpresa relativa. Na verdade a espanhola é apenas uma das muitas figuras (de FKA Twigs a Benjamin Clementine, passando por Moses Sumney) que nos últimos anos tem assumido influências a partir do trajecto desenhado por James Blake.

Nesse sentido a participação de Rosalía é perfeita, cantando em castelhano em Barefoot in the park, com um romantismo que nunca é exacerbado, com a dupla a entoar os prazeres simples e relacionais da vida. Ainda assim a presença mais marcante talvez seja a de André 3000, que anda há muito escondido do universo da música, depois de ter redefinido os territórios do hip-hop, e tudo à volta, no contexto da dupla OutKast, entre a segunda metade dos anos 1990 e os primeiros tempos dos anos 2000.

A canção onde participa, Where’s the catch?, é uma das melhores, começando com um solilóquio de James Blake, seguido de uma cadência desacelerada quase próxima da música house, entrando de seguida André 3000 num registo mais exteriorizado, mistura de sentido lúdico de um e interioridade de outro. Mas apesar de todas as participações as canções mais radiosas acabam por ser aquelas em que James Blake está mais só.

É o caso de Into the red ou Power on, que mantém as características da sua música, batimento cardíaco descarnado e texturas envolventes, mas parecendo possuídas por uma alma mais iluminada, ou na magnífica Can’t believe the way we flow (com ajuda na produção de Oneohtrix Point Never), com o som espacial, as palavras e a sua voz cintilante a assumirem que ele e a namorada foram construído uma bolha sentimental em Los Angeles que agora tem tradução nas canções. Até nos enleios mais clássicos, como em Don’t miss it, onde comanda a voz e o piano, os momentos de respiração e as emoções são tranquilas, o mesmo acontecendo na terna balada ambiental final, Lullaby for insomniac.

Mesmo com todas as participações (o produtor Metro Boomin também por aqui anda em duas canções) nunca perde a identidade, com interacções digitais tão imediatas quanto fisicamente distantes, vozes alteradas e cadências lentas, que propõem transições inesperadas, criando novas configurações. Fica a sensação que, quase dez anos depois, encontrou um espaço de total conforto, seja quando aplica técnicas digitais, assume uma costela mais clássica, ou revela uma nova transparência enquanto ser humano, sem que isso o faça replicar simplesmente uma fórmula. Pelo contrário, ao mesmo tempo que parece aceitar-se cada vez mais nas suas fragilidades, mais a sua música nos é devolvida com generosidade e brilhantismo.