Chamem a polícia
Um exercício de estilo calculado mas angustiante, uma tragédia em câmara lenta inteiramente ouvida do interior das instalações do 112.
Enquanto corriam os tensos 88 minutos de O Culpado, pensávamos em muita coisa — nas séries B clássicas de Hollywood, feitas com um mínimo de dinheiro e um máximo de eficácia, mas também na ideia do teatro radiofónico e do modo como a ausência de imagem parece amplificar e dar peso a uma história ou uma situação. Há imagem em O Culpado, sim — a de um polícia afecto ao call center do 112 em Copenhaga, interpretado por Jakob Cedergren numa performance cuja intensidade começa por ser medida no contraste entre o seu rosto e a sua voz, entre o modo como tem de responder de acordo com o guião àqueles que lhe telefonam e como os seus tiques traem o modo como gostaria de o fazer. Tudo o que acontece nesta hora e meia existe fora do call center, e o espectador apenas o ouve, através dos auscultadores dos telefones que vão sendo atendidos. Nunca a câmara de Gustav Möller abandona aquelas quatro paredes — e quando o faz é apenas para mudar de sala, para um gabinete isolado do open space onde o polícia acabará por fechar os estores e ficar no escuro, iluminado apenas pelo ecrã do computador que o guia na sua tentativa de ajuda a uma mulher que parece estar a ser raptada.
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Enquanto corriam os tensos 88 minutos de O Culpado, pensávamos em muita coisa — nas séries B clássicas de Hollywood, feitas com um mínimo de dinheiro e um máximo de eficácia, mas também na ideia do teatro radiofónico e do modo como a ausência de imagem parece amplificar e dar peso a uma história ou uma situação. Há imagem em O Culpado, sim — a de um polícia afecto ao call center do 112 em Copenhaga, interpretado por Jakob Cedergren numa performance cuja intensidade começa por ser medida no contraste entre o seu rosto e a sua voz, entre o modo como tem de responder de acordo com o guião àqueles que lhe telefonam e como os seus tiques traem o modo como gostaria de o fazer. Tudo o que acontece nesta hora e meia existe fora do call center, e o espectador apenas o ouve, através dos auscultadores dos telefones que vão sendo atendidos. Nunca a câmara de Gustav Möller abandona aquelas quatro paredes — e quando o faz é apenas para mudar de sala, para um gabinete isolado do open space onde o polícia acabará por fechar os estores e ficar no escuro, iluminado apenas pelo ecrã do computador que o guia na sua tentativa de ajuda a uma mulher que parece estar a ser raptada.
A viagem ao coração das trevas feita por Asger Holm, a personagem de Cedergren, é um percurso de redenção para um homem convicto do seu lugar no mundo e certo do que tem de fazer, mas apanhado nas armadilhas que essas certezas lhe armaram. A tragédia em câmara lenta que decorre fora de campo durante todo o filme, desencadeada pelo pedido de ajuda telefónico, amplifica a solidão e a dúvida da personagem, questiona a própria noção de realidade — reforça e destrói o casulo em que Asger, que não é nenhum santinho e foi transferido para o 112 enquanto aguarda sanção institucional, se fechou para sobreviver. Tudo isto passa, apenas, pela presença de Cedergren e pelo trabalho minucioso de construção, narrativa e cinematográfica, de Möller — ninguém diria que é uma primeira longa. E se há momentos em que tudo parece algo laborioso, demasiadamente bem montado, logo a imperceptível modulação dos trabalhos de actor, de som, de câmara, de argumento, de encenação sublinha a diferença entre o calculado e o calculista. O Culpado tem mais do primeiro do que do segundo. E isso chega para o tornar numa das primeiras boas surpresas de 2019.