O meu olhar interessado sobre a abertura do ano judicial
Aquilo que a nossa democracia menos precisa é de instrumentos que visem limitar politicamente a acção do Ministério Público e dos tribunais.
Assisti ontem à sessão solene de abertura do ano judicial. A cerimónia assinala simbolicamente, há 40 anos, o arranque do ano na Justiça, com os balanços dos sucessos e insucessos e o lançamento dos temas mais relevantes para o período seguinte. Por imposição legal, é, desde 1987, o único evento público que reúne os representantes dos poderes soberanos do Estado – Presidente da República, presidente da Assembleia da República, primeiro-ministro e presidente do Supremo Tribunal de Justiça – e o procurador-geral da República e bastonário da Ordem dos Advogados. Este simbolismo acresce-lhe importância.
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Assisti ontem à sessão solene de abertura do ano judicial. A cerimónia assinala simbolicamente, há 40 anos, o arranque do ano na Justiça, com os balanços dos sucessos e insucessos e o lançamento dos temas mais relevantes para o período seguinte. Por imposição legal, é, desde 1987, o único evento público que reúne os representantes dos poderes soberanos do Estado – Presidente da República, presidente da Assembleia da República, primeiro-ministro e presidente do Supremo Tribunal de Justiça – e o procurador-geral da República e bastonário da Ordem dos Advogados. Este simbolismo acresce-lhe importância.
Seria impossível esgotar aqui todas questões abordadas. Numa análise obviamente interessada, saliento as que considero mais importantes.
Começo pelo bastonário da OA. Pareceu-me enigmático, quando, a propósito das “enfermidades” do sistema, disse que há um défice de intervenção da política na justiça, que leva a que o judiciário ocupe um lugar que não é seu, o que é pernicioso para a saúde da república. É assim – disse ele – que começam as derivas (?). Não sei se decifrei bem a mensagem. Presumindo razoavelmente que se referia a factos recentes, pareceu-me uma declaração encriptada de apoio ao programa político do PSD de Rui Rio, que pretende uma intervenção mais “musculada” na Justiça. Se é isso, não posso discordar mais. Aquilo que a nossa democracia menos precisa é de instrumentos que visem limitar politicamente a acção do Ministério Público e dos tribunais. Era bom que o bastonário tivesse sido mais claro. Nestas coisas, se a mensagem é polémica, mais vale dizê-la de maneira que se perceba.
Da PGR retive, com apreço, o anúncio de que o MP, para além do combate à criminalidade económico financeira, irá também dar prioridade a áreas com menor impacto mediático, mas nem por isso menos inquietantes: protecção dos interesses difusos e colectivos (ambiente), cibercriminalidade e ciberterrorismo, protecção dos adultos vulneráveis (vítimas de crimes e pessoas incapacitadas) e criminalidade juvenil (na escola, no desporto e nos espectáculos).
O presidente do Parlamento foi globalmente correcto, no plano institucional. Um ponto de maior dúvida, apenas, sobre a afirmação que cada Estado tem a democracia que melhor o serve, em função do seu contexto e cultura. Claro que as regras democráticas têm suficiente elasticidade para acomodar as especificidades históricas e culturais de cada país, sem perda de identidade. Mas a democracia tem princípios básicos indiscutíveis: as liberdades individuais, a igualdade e o respeito pelos direitos humanos, o pluralismo político e a eleição, o primado da lei e a independência do poder judicial, a liberdade de imprensa. No cumprimento destas regras – como disse logo a seguir o Presidente da República – não há eufemismos: ou há democracia ou ditadura.
A intervenção da ministra da Justiça ficou muito marcada pelo barulho dos assobios dos 3.000 funcionários judiciais que protestavam contra ela na rua. Anotei um “recado” que também me tinha como destinatário. Disse ela que os movimentos reivindicativos são legítimos, mas os programas dos diversos grupos profissionais não são realizáveis. Talvez. Mas entre o realizável e o irrealizável há todas as hipóteses intermédias. É aí que se buscam consensos.
Positiva, também, a intervenção do novo presidente do STJ, quando enunciou – com uma verdade objectivamente indesmentível, mas que muitos não querem ver – as razões porque 2018 foi um ano globalmente positivo na Justiça. No plano da eficiência, basta ver, por exemplo, que entraram nos tribunais 437.554 processos e findaram 563.929, com tempos médios de pendência cada vez mais reduzidos.
Do Presidente da República saliento, por fim, a referência à necessidade de adequar o estatuto funcional e financeiro dos magistrados às exigências ímpares da sua função e de se agir a tempo de evitar que sejam forçados a enveredar por acções de reivindicação de interesses profissionais, que dificilmente se compatibilizam com a pertença a um poder soberano do Estado. Qualquer coisa que os juízes disseram mil vezes nestes últimos tempos. Com o primeiro-ministro e ministra da Justiça ali mesmo ao lado, é de confiar que tenham ouvido.