Há um novo regime para simplificar as compras na ciência, mas nem todos sabem usá-lo

Universidades e centros de investigação têm dúvidas sobre a aplicação de decreto-lei publicado no Verão. Governo diz que o que falta é uma desburocratização das instituições.

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Miguel Manso

Imagine-se a seguinte situação: uma revista de grande reputação publica um artigo sobre um reagente químico que depressa se torna essencial na investigação científica. Esse produto é apenas comercializado por um único fornecedor estrangeiro, que teria que estar inscrito no Portal da Contratação Pública para poder vender o produto aos centros de investigação portugueses. Como essa empresa não o faz, a instituição portuguesa não pode, por isso, fazer a compra. O cenário não é apenas hipotético: tem-se colocado com frequência. O Governo criou, no Verão, um novo regime para simplificar os processos de compra e dar resposta a situações como esta, mas nem todos os centros de investigação sabem como o usar.

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Imagine-se a seguinte situação: uma revista de grande reputação publica um artigo sobre um reagente químico que depressa se torna essencial na investigação científica. Esse produto é apenas comercializado por um único fornecedor estrangeiro, que teria que estar inscrito no Portal da Contratação Pública para poder vender o produto aos centros de investigação portugueses. Como essa empresa não o faz, a instituição portuguesa não pode, por isso, fazer a compra. O cenário não é apenas hipotético: tem-se colocado com frequência. O Governo criou, no Verão, um novo regime para simplificar os processos de compra e dar resposta a situações como esta, mas nem todos os centros de investigação sabem como o usar.

A solução para situações como a que é descrita tem sido quase sempre encontrar uma empresa portuguesa que sirva de intermediário no processo. Por causa dessa mediação, o reagente químico “chega a custar cinco a dez vezes mais” a um laboratório, conta o presidente do Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNBC) da Universidade de Coimbra, João Ramalho Santos. O Decreto-Lei n.º 60/2018, publicado em Agosto, isenta as actividades de investigação e desenvolvimento (I&D) de algumas das regras do Código dos Contratos Públicos a que estão sujeitos todos os organismos do Estado e também as entidades privadas sem fins lucrativos que recebem financiamento público, como é o caso de alguns centros de investigação.

O novo regime legal aumenta o limite de uma compra sem necessidade de concurso público de 75 mil euros para 221 mil euros. “Isto significa que podemos fazer aquisições de forma mais integrada”, explica Mário Barbosa, que dirige o Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), no Porto. O regime da contratação pública obrigava as instituições a fazerem lotes abaixo dos 75 mil euros para poderem ir fazendo as aquisições sem concurso.

O Código dos Contratos Públicos também impede que as instituições comprem por ajuste directo mais do que 75 mil euros a um mesmo fornecedor. Atingido esse valor, tinham de procurar uma outra empresa que vendesse o mesmo produto, que muitas vezes não existe. O que criava situações em que o produto – além de reagentes químicos, animais e componentes electrónicos estão entre as principais compras dos laboratórios científicos – era vendido a uma outra empresa, que depois o vendia à universidade ou ao centro de investigação. No processo, a compra “encarecia sempre”, segundo José Manuel Mendonça, administrador do Inesc-Tec.

A nova lei vem, por isso, permitir poupança às instituições em casos como este, tanto de forma directa, como de forma indirecta, uma vez que os serviços administrativos ficaram menos sobrecarregados. “A nossa experiência tem sido bastante positiva”, valoriza Mário Barbosa. “Os meus funcionários que até agora repelavam os cabelos dizem-me agora que está a funcionar magnificamente”, concorda João Ramalho Santos.

Elvira Fortunato, do Centro de Investigação de Materiais (Cenimat) da Universidade Nova de Lisboa, também vê “grandes vantagens” no novo regime. “Temos uma máquina administrativa diabólica. Muito do dinheiro de que estamos a falar vem de fundos comunitários e, com Bruxelas, não temos este nível de burocracia”, explica.

Nem todos sabem usá-lo

Todavia, se grandes centros de investigação como o CNBC, o i3S, o Inesc-Tec e o Cenimat têm tirado proveito do novo regime legal, muitas instituições de ensino superior e laboratórios científicos, sobretudo os mais pequenos, não estão a ser capazes de fazê-lo. Por exemplo, o Instituto Politécnico de Bragança – onde tem sede o Centro de Investigação de Montanha –, desde a publicação da lei, em Agosto, não recorreu a ela “em nenhum procedimento”, explica o presidente daquela instituição, Orlando Rodrigues. “Não temos muito claro como as coisas funcionam”, acrescenta o mesmo responsável.

Os termos do decreto-lei têm provocado uma discussão interna dentro das próprias instituições, como contam ao PÚBLICO vários responsáveis de universidades públicas. “Havia um grande entusiasmo que rapidamente se perdeu”, diz um deles. Por exemplo, as instituições não percebem se a lei se aplica apenas ao dinheiro proveniente de projectos competitivos – candidaturas apresentadas a financiamento europeu e conseguido em concursos internacionais – ou também às verbas das receitas gerais das instituições.

Reitores e administradores têm receio de estar a cometer alguma ilegalidade, até porque a gestão financeira das instituições tem estado perante o escrutínio do Tribunal de Contas e das diferentes estruturas de inspecção da administração pública.

Face às dificuldades de aplicação do novo regime, o Governo pediu à Associação Europeia de Universidades (EUA, na sigla em inglês) uma análise comparativa do quadro legal e práticas de adjudicação de contratos públicos em universidades de Portugal e de outros oito países da União Europeia.

A EUA identificou como um dos “desafios” da nova lei o facto de “não ser sempre claro se uma actividade (ou compra) está 100% relacionada com I&D ou também com outras actividades”. O regime aplica-se apenas às compras de bens e serviços destinados a actividades estritamente científicas. As universidades têm sobretudo “actividades mistas (tal como o ensino de estudantes de doutoramento)”, valoriza o mesmo relatório, que considera que “será importante para clarificar que actividades podem ser abrangidas pela nova legislação”.

É também o que pedem investigadores como José Manuel Mendonça: “É preciso clarificar as dúvidas que temos tido.”

O relatório da EUA foi apresentado a um grupo de administradores de universidades e directores de centros de investigação na segunda-feira, em Lisboa. Essa foi a primeira sessão de um Fórum para Simplificação, que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior pretende que percorra todo o país nas próximas semanas, destinado a “partilhar boas práticas” na utilização do novo quadro legal.

Este é um “processo complexo”, diz ao PÚBLICO o ministro da Ciência Manuel Heitor. Além da legislação aprovada no Verão, “há muitos outros passos” para garantir que as instituições científicas e do ensino superior realmente usam o novo quadro. “É preciso também que as próprias instituições simplifiquem as regras que aplicam internamente”, afirma o governante. O relatório da EUA aponta, de resto, para o facto de as regras de contratação institucional serem “por vezes, mais rigorosas do que a legislação nacional” e também “mais rigorosas do que o necessário”.

O novo regime de contratação pública para a aquisição de bens e serviços para I&D foi uma das peças do chamado Simplex para a Ciência, que o Governo aprovou em Junho e que garantia, entre outros aspectos, a “previsibilidade e periodicidade” dos concursos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e da Agência Nacional de Inovação. No mesmo sentido, documentos como diplomas e certificados deixaram de ser factor de eliminação de uma candidatura, podendo ser apresentados posteriormente, no acto de contratação das bolsas de investigação ou contratos dos investigadores.