May Day: Primeira-ministra britânica algemou-se ao seu “Brexit” e pode cair hoje com ele
Theresa May lutou, sofreu e resistiu, contra tudo e todos, na defesa do seu acordo para a saída do Reino Unido da UE. Deputados decidem futuro imediato do divórcio e com ele o legado que sobreviverá à primeira-ministra.
Quando os deputados da Câmara dos Comuns forem chamados a pronunciar-se, esta terça-feira, sobre o tratado jurídico para a saída do Reino Unido da União Europeia, negociado, fechado e apresentado pelo Governo do Partido Conservador, estarão a oferecer um veredicto ao desempenho dos últimos dois anos e meio de uma única pessoa: Theresa May. Nenhum outro membro do executivo, líder político britânico ou representante europeu lutou tanto, de forma tão afincada e obsessiva, como a primeira-ministra o fez, pelo “Brexit”. Ou pelo menos pelo “Brexit” que resulta do texto de 585 páginas sobre o qual cada deputado terá de alocar um “sim” ou um “não”.
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Quando os deputados da Câmara dos Comuns forem chamados a pronunciar-se, esta terça-feira, sobre o tratado jurídico para a saída do Reino Unido da União Europeia, negociado, fechado e apresentado pelo Governo do Partido Conservador, estarão a oferecer um veredicto ao desempenho dos últimos dois anos e meio de uma única pessoa: Theresa May. Nenhum outro membro do executivo, líder político britânico ou representante europeu lutou tanto, de forma tão afincada e obsessiva, como a primeira-ministra o fez, pelo “Brexit”. Ou pelo menos pelo “Brexit” que resulta do texto de 585 páginas sobre o qual cada deputado terá de alocar um “sim” ou um “não”.
É praticamente impossível olhar para aquela que é uma mais importantes votações parlamentares de sempre da História da política britânica e retirar May da equação. Porque foi a sua capacidade de resistência e de sobrevivência, ciclópica em todos os sentidos, que lhe permitiu chegar aqui com um acordo e, na teoria, com todas as possibilidade para cumprir aquilo a que se propôs: retirar o Reino Unido da UE a 29 de Março de 2019.
Desde que substituiu David Cameron na liderança do Governo, na ressaca do referendo à Europa, que May tem tido mestria para transformar obstáculos e contestações aos seus planos para o divórcio em balões de oxigénio para a sua liderança. Alimentou-se disso. Como quando quase sucumbiu a uma eleição por si convocada, para aumentar a maioria tory no Parlamento, e a perdeu. Sobreviveu, com um incómodo acordo parlamentar com os ultraconservadores norte-irlandeses do Partido Unionista Democrático (DUP).
Ou como quando viu dois dos seus principais ministros, rostos do “Brexit” – Boris Johnson e David Davis – demitir-se, em desacordo com a suavização dos seus planos para a saída. Manteve a estratégia e sobreviveu. Ou como quando desesperou tanto a ala eurocéptica do seu partido e foi alvo de uma moção de desconfiança. Disputou a votação interna e, uma vez mais, sobreviveu.
Do hard-“Brexit” comandado unicamente pelo Governo, sem a participação do Parlamento, que May prometeu nos primeiros meses de chefia do processo, sobra pouco. O acordo que chegou Westminster é a soma da obstinação da primeira-ministra a um número incontável de recuos e contratempos, muitos deles auto-infligidos, distribuídos entre a Justiça, a Câmara dos Lordes, as urnas, Bruxelas, Downing Street e a Câmara dos Comuns.
“[May tornou-se] refém das circunstâncias cruéis muitas vezes causadas pelos seus próprios erros, consumida por um megalómano sentido de dever – uma mistura monstruosa de devoção e arrogância”, resume no Guardian o colunista Rafael Behr.
Este extrapolado sentido de dever é o que a faz manter a intransigência até ao fim, quando se atropelam as dúvidas sobre as probabilidades de sucesso da sua demanda. A primeira-ministra garante que se os deputados não aprovarem o seu acordo só haverá um de dois caminhos: saída sem acordo ou reversão do “Brexit”. E rejeita liminarmente outros cenários: desde a extensão do prazo do artigo 50º e adiamento da saída, passando pelo segundo referendo, renegociação do acordo ou novas eleições.
Resiliência ou teimosia?
Pode a resiliência de Theresa May salvar o seu acordo? Tim Bale duvida. O especialista em Política Britânica na Universidade de Queen Mary, de Londres, considera que a primeira-ministra estava condenada a falhar, a partir do momento em que definiu os seus planos para o “Brexit”.
“May decidiu que queria um hard-‘Brexit’ e entendeu estar mandatada para acabar com a liberdade de movimento e para retirar o país do mercado único e da união aduaneira”, diz ao PÚBLICO. “Agiu como se o resultado do referendo tivesse sido esmagador e não uma vitória por uma margem reduzida. Essa postura fê-la abdicar, muito cedo, de qualquer consenso parlamentar. E está agora a encurralá-la”.
Bale destaca ainda as características pessoais da líder tory para explicar “o ponto sem retorno” a que chegou. “May não tem o hábito de seguir os conselhos dos seus colegas, raramente muda de ideias, não é uma negociadora flexível e não é uma grande comunicadora”, diz o académico. “Por isso, onde uns vêem resiliência outros vêem teimosia dogmática. No caso de May, essa resiliência pode vir a não ser mais do que um falhanço trágico”.
Porque no Parlamento não há nenhum partido que apoie o seu acordo incondicionalmente. Foi, aliás, essa circunstância, que obrigou a primeira-ministra a cancelar a votação de Dezembro, dando mais um abanão na sua confiabilidade dentro das quatro paredes da Câmara dos Comuns.
O backstop, sempre
No centro da discórdia está o backstop, a controversa solução encontrada pelas partes para evitar uma fronteira física entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte. Esta implica uma nova área aduaneira comum entre o Reino Unido e a UE e o alinhamento total de Belfast com as regras do mercado único, caso os dois blocos não fechem novo acordo até ao fim do período de transição – Dezembro de 2020, com possibilidade de extensão até ao final de 2022 – ou não encontrem uma solução tecnológica para evitar a reposição dos controlos alfandegários na ilha irlandesa.
A facção eurocéptica do Partido Conservador olha para o backstop como uma “capitulação a Bruxelas”, que pode deixar o Reino Unido “indefinidamente preso” nas regras europeias. O DUP, que suporta o Governo, vê-a como uma via aberta para a edificação de uma “fronteira no Mar da Irlanda”.
Ambos os grupos vão votar contra, previsivelmente acompanhados por alguns tories pró-UE que, mesmo intercedendo pelo cumprimento do resultado do referendo, acreditam que, se é para sair nestes termos, mais vale não sair de todo.
O Partido Trabalhista também vai votar contra – ou pelo menos grande parte dos seus deputados. Jeremy Corbyn quer eleições e promete regressar a Bruxelas, como primeiro-ministro, para renegociar um acordo que mantenha o Reino Unido dentro do mercado único. Conta com isso um truque na manga, que não quer gastar enquanto não tiver a certeza de que é bem-sucedido: uma moção de censura para fazer cair o Governo.
Muitos deputados trabalhistas estão com o líder na votação, mas o que os move verdadeiramente é a possibilidade de haver um segundo referendo. Na mesma linha, Liberais Democratas, Partido Nacional Escocês, Partido Verde e Plaid Cymru também se preparam para votar conta.
Que julgamento da História?
Para o professor de Política e Relações Internacionais da Universidade de Kent Matthew Goodwin é o legado da primeira-ministra que está em causa na votação. Ao ponto de colocar May no grupo dos líderes britânicos do pós-guerra “que serão para sempre associados a um único evento da História” – como Anthony Eden (Crise do Suez, 1956), Tony Blair (Invasão do Iraque, 2003) e David Cameron (Referendo ao “Brexit”, 2016).
“Como tantos outros líderes conservadores, todo o legado político de May será definido pela questão europeia”, diz ao PÚBLICO.
Para Tim Bale, a diferença entre o chumbo e aprovação ditará se May ficará conhecida como “uma das piores primeiras-ministras que já tivemos” ou como a “primeira-ministra que tirou o Reino Unido da UE”. A segunda hipótese é mais atractiva, admite, mas dado o que aí vem pode ser redutora. “Nesse caso, o julgamento focar-se-á nas consequências da saída para a sociedade, economia e diplomacia do Reino Unido”.
Goodwin tem sérias dúvidas de que o acordo seja aprovado e arrisca que a “grande sobrevivente da política britânica” se transformará numa “figura altamente diminuída” aos olhos da História, se perder a votação. Mas não deixa de olhar para o modus operandi de May para sugerir que este pode não ser o último suspiro político da primeira-ministra.
“Em situações normais é expectável que um líder de Governo se demita se não conseguir aprovar legislação-chave. Mas não vivemos tempos normais. E May pode querer entrar noutra batalha. Mesmo a coxear”.