Os tempos que vivemos pediram a Sara Carinhas um espectáculo mais frontal

A actriz regressa à encenação com Limbo, que começou a tomar forma numa viagem à Atenas dos refugiados. Sonho e pesadelo, guerra e perigos, vida e morte mostram-se na Voz do Operario, até 22 de Janeiro.

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Antes sequer de Limbo ser uma ideia, houve uma viagem a Atenas. Em 2016, a actriz e encenadora Sara Carinhas pôs-se a caminho da capital grega para observar de perto o cenário da chegada de refugiados à cidade. Mais do que de observar essas vidas sem os filtros de uma câmara, ia à procura de uma resposta impossível à pergunta que então a atormentava: como podiam aqueles seres atrair tanto ódio e tanta indiferença por parte de todo o mundo?

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Antes sequer de Limbo ser uma ideia, houve uma viagem a Atenas. Em 2016, a actriz e encenadora Sara Carinhas pôs-se a caminho da capital grega para observar de perto o cenário da chegada de refugiados à cidade. Mais do que de observar essas vidas sem os filtros de uma câmara, ia à procura de uma resposta impossível à pergunta que então a atormentava: como podiam aqueles seres atrair tanto ódio e tanta indiferença por parte de todo o mundo?

“Voltei dessa viagem um pouco perturbada”, confessa Sara Carinhas ao PÚBLICO, dias antes de Limbo se estrear no salão da Escola da Voz do Operário, em Lisboa – estará em cena de 15 a 22 de Janeiro, subindo até ao Teatro Municipal Rivoli, Porto, a 22 e 23 de Novembro. “Aí nasceu a vontade de voltar a encenar, mas num registo mais alerta.” Não demorou a perceber que não (lhe) era possível fazer um espectáculo em torno daquela questão. E dessa vontade inicial foram ficando assuntos mais ou menos velados, alimentados também por “Trump, Bolsonaro e muitas coisas terríveis que aconteceram e ajudaram” ao diálogo que a encenadora estabeleceu, sem pressas, com um conjunto de intérpretes da sua geração. “Tudo isto foi um namoro lento, são pessoas que fui encontrando no meu caminho e que, nalguns casos, fizeram um voto de confiança gigante porque não sabiam o que ia acontecer.”

Sara Carinhas quis encontrar em António Bollaño, Carolina Amaral, Filomena Cautela, Marco Nanetti, Nádia Yracema e Pierre Ensergueix gente que a fascinasse, mas também que pudesse partilhar o seu “sentido de responsabilidade” e o seu olhar dirigido ao futuro. E foi com estes seis intérpretes que acumulou histórias pessoais ou nem por isso – autorizados que estavam a ficcionar ou a mentir deliberadamente acerca das suas memórias –, a que se juntaram textos trazidos de fora da sala de ensaios e filmes visionados em conjunto, até que os temas começaram a emergir e a revelar-se nas sessões de trabalho. “O processo mais difícil foi quando, depois de já me terem oferecido tanto, tive de montar um espectáculo a partir desse material... Essa é uma zona de lama, porque que há muitas coisas de que gostamos mas que não são gémeas nem antagonistas – e, portanto, não fazem sentido juntas”, explica.

Aquilo que Sara sabia que havia de querer colocar no centro do espectáculo eram temáticas muito “suas” como a memória e a infância, sonhos ou pesadelos carregados vida fora, recordações mais ou menos fabricadas. Com as propostas dos intérpretes, houve depois temáticas mais ligadas à guerra, por exemplo, que se impuseram e ajudaram a dar uma forma a Limbo. “Sempre com a tónica no título, porque era muito importante explorarmos estes vários géneros de limbo”, esclarece, concretizando este estado entre pertença e não pertença, entre sono e vigília, entre vida e morte, sugerido, antes de mais, por Atenas e pelos outros lugares onde os refugiados são depositados e ficam em suspenso, sem saberem para que lado cairão. “É por isso também que estamos fora de um teatro convencional”, diz. “Estamos num sítio que, se calhar, não é para ser usado desta maneira.”

Um chá e uma manta

No salão da Voz do Operário, há cadeiras de esplanada dispostas à volta de mesas. Depois de os espectadores serem para ali encaminhado pelos intérpretes, de se sentarem e de lhes serem oferecidos um chá, uma manta, pequenas histórias de boas-vindas, depois de se instalar uma situação de conforto e um ambiente que poderia conter a leveza de um cabaré, tudo começa, aos poucos, a ruir. A encenadora não quer empurrar o público para uma armadilha de incómodo, mas optou por criar um espectáculo em que a fragmentação das várias cenas cria uma constante surpresa e instala a sensação de não se conseguir “agarrar” intérpretes ou personagens. Aquilo que vemos são histórias boicotadas, vidas amputadas, pequenos acessos a pessoas que nos aparecem sempre como incompletas, quase reduzidas a espectros.

Em “palco”, a palavra teatral é acompanhada pela palavra cantada mas também pelo movimento coreografado, inspirados pelas mais diversas fontes. E é algo que mantém uma ligação mais estreita com a linguagem profundamente poética que Sara Carinhas costuma privilegiar enquanto encenadora e actriz. Desta vez, no entanto, o tom é mais terreno. Há sirenes que anunciam bombardeamentos, fugas de perigos indizíveis, a certeza de que este é um tempo que lhe exigiu um espectáculo mais frontal. Mesmo que, como diz, em Limbo se possa “contar uma história real, algo brutal, e a seguir alguém se sentar ao piano e cantar uma canção”. Uma não apaga a outra.