Professores repudiam corte de versos feito pela Porto Editora em poema de Álvaro de Campos
Em causa está o desaparecimento de três versos do poema Ode Triunfal de Álvaro de Campos, um dos que habitualmente é escolhido pelos professores do 12.º ano.
A presidente da Associação Nacional de Professores de Português, Rosário Andorinha, é peremptória na posição que toma quanto ao corte de três versos da Ode Triunfal de Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, efectuado num manual da Porto Editora. “Não consigo aceitar que um poema seja cortado, porque ao fazê-lo já não estamos perante o mesmo texto, nem a respeitar o seu autor”, afirma esta docente de Português do ensino secundário.
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A presidente da Associação Nacional de Professores de Português, Rosário Andorinha, é peremptória na posição que toma quanto ao corte de três versos da Ode Triunfal de Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, efectuado num manual da Porto Editora. “Não consigo aceitar que um poema seja cortado, porque ao fazê-lo já não estamos perante o mesmo texto, nem a respeitar o seu autor”, afirma esta docente de Português do ensino secundário.
No manual Encontros, destinado à disciplina de Português do 12.º ano, o poema com 240 versos é transcrito praticamente na íntegra, à excepção de três versos que foram cortados por opção dos autores deste livro. O primeiro a desaparecer foi este: “Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas (…)”. E depois, num trecho mais à frente, foram cortados mais estes dois: “E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o! —/Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.”
Estes versos aparecem substituídos por linhas ponteadas, a mesma opção adoptada pela censura durante o Estado Novo, e sem que haja no manual qualquer menção ao corte efectuado.
Num esclarecimento publicado nesta segunda-feira na sua página electrónica, a Porto Editora nega esta evidência, sublinhando que “a indicação de que os versos foram cortados é visível tanto graficamente (linhas a tracejado) como através da numeração das linhas.”. Segundo a editora, esta opção foi tomada para permitir que sejam os professores, que têm o poema na íntegra na versão do manual que lhes é reservada, a “decidir se abordam em contexto de sala de aula – e de que forma – versos que têm linguagem explícita e se relacionam com a prática da pedofilia”.
Alunos com 17 e 18 anos
“Estamos a falar de alunos do 12.º ano, que têm entre 17 e 18 anos. Não faz qualquer sentido estar a escamotear versos só porque alegadamente têm uma linguagem menos própria”, sustenta Rosário Andorinha, para quem esta opção acaba por desvirtuar o estudo de Álvaro de Campos, que precisamente utiliza “uma linguagem que pretende agredir, chocar”.
Esta docente lembra a propósito que basta aos alunos clicarem para terem acesso à versão integral, que aliás aparece fielmente reproduzida noutras obras do grupo Porto Editora.
No programa de Português do 12.º ano não estão seleccionados poemas para leitura dos alunos. Refere-se apenas, no caso de Álvaro de Campos, que devem ser escolhidos três poemas deste heterónimo de Fernando Pessoa.
Rosário Andorinha esclarece que apesar de não ser de leitura obrigatória, “é muito raro que os professores não escolham a Ode Triunfal, porque neste poema tudo tem a ver com vanguardas e com o sentido de ruptura que levaram à criação do próprio heterónimo”. Faz parte por isso do “cânone” do que deve ser apresentado aos alunos e existem outros manuais em que é reproduzido na íntegra, acrescenta.
A também professora de Português do ensino secundário, Maria do Carmo Vieira, adianta que devido à extensão do poema optou quase sempre por escolher excertos para abordar nas suas aulas. Apesar desta sua opção, também condena a opção pelo corte de três versos quando a suposta intenção era a de reproduzir a Ode Triunfal na íntegra. “Não tem cabimento nenhum fazer isto e é até nocivo porque é feito de forma a que os alunos não se apercebam do que foi cortado”, denuncia.
Os manuais escolares são escolhidos pelas escolas, de acordo com o seu “contexto educativo”, a partir de uma lista de livros que estejam certificados para o ensino. Este processo passou a estar regulamentado desde 2006 e só pode ser levado por diante por entidades que estejam acreditadas pelo Ministério da Educação.
Quer isto dizer que na prática o ministério não certifica os manuais, mas sim as entidades que os vão avaliar e que podem ser instituições do ensino superior, associações de professores, sociedades científicas, entre outras. A lista dos manuais aprovados é depois publicada pela Direcção-Geral da Educação.
O manual Expressões, da autoria de Noémia Jorge, Cecília Aguiar e Miguel Magalhães, foi certificado em 2017 pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria. Segundo o Expresso, que avançou com a notícia, foi adoptado por 90 das cerca de 600 escolas secundárias existentes.