Na mochila levam uma pizza, um vibrador, o que for. São os estafetas do século XXI

Aceleram para fazer microentregas no Porto e em Lisboa. Um número crescente de luso-venezuelanos encontra nestas plataformas digitais de entrega um modo de ganhar a vida. Não são os únicos.

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Jonathan Ramos nem sabe quantas vezes, ao fim-de-semana, acelerou pelas ruas do Porto até uma farmácia para comprar preservativos ou pílulas do dia seguinte e entregar a alguém que nunca vira. Uma vez, até foi a uma sex shop comprar um vibrador. O que mais recolhe e entrega, porém, são refeições quentes.

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Jonathan Ramos nem sabe quantas vezes, ao fim-de-semana, acelerou pelas ruas do Porto até uma farmácia para comprar preservativos ou pílulas do dia seguinte e entregar a alguém que nunca vira. Uma vez, até foi a uma sex shop comprar um vibrador. O que mais recolhe e entrega, porém, são refeições quentes.

O técnico de climatização, natural de Maturín, Venezuela, aterrou em Portugal em Maio de 2017, depois de duas tentativas de sequestro. “Sequestraram um amigo, os pais pagaram o sequestro e mataram-no.” Vendeu, a fiado, a sua quota da empresa ao sócio. Fechou a porta do apartamento. E viajou com a namorada para Portugal.

Neto de portugueses, Jonathan andou às voltas com as aulas de português e outros trâmites necessários para obter a nacionalidade. Entretanto, foi trabalhando numa estação de serviço e numa churrasqueira, espantado com a penúria salarial. O primo, Johnny, falou-lhe numa plataforma digital de entregas: “Se quiseres, experimenta. Eu vou experimentar.” E Jonathan, que é doido por motas, animou-se com essa possibilidade.

O estafeta de 35 anos apresenta-se como “número um da Glovo”, uma aplicação para dispositivos móveis que surgiu em Barcelona em 2015 e depressa se expandiu, chegando a Lisboa em Outubro 2017 e ao Porto em Março de 2018. “Na churrasqueira ganhava um salário de 600 euros, aqui ganho 1800 ou 2000", diz, numa alusão aos valores de Inverno.

Só no Porto, há uns 20 luso-venezuelanos a trabalhar através daquela plataforma e muitos mais brasileiros e alguns portugueses de Portugal. Impossível precisar quantos exercem tal actividade no país e com que perfil. A empresa recusa-se a revelar estes e outros “dados sensíveis de mercado”.

Depois de Jonathan e do primo, alistaram-se o sogro, António, e o irmão, Cristian. Por volta das 12h, é vê-los na Praça de Filipa de Lencastre, na Baixa, à espera que lhes caia algum pedido em sorte. Outros juntam-se noutros pontos-chave, como a food corner, que concentra cinco restaurantes, na Rua do Ateneu Comercial.

“É melhor trabalhar de motorizada do que andar aí a ganhar o salário mínimo numa fábrica, não é?”, solta o sogro, que conta 60 anos, 52 dos quais passados na Venezuela, já em cima da moto. “Também, na minha idade, ninguém me quer numa fábrica”, encolhe-se. “Aqui estamos bem, pelo menos melhor do que na Venezuela!”

Os interessados – munidos de bicicleta, moto ou carro – inscrevem-se no site da empresa. Contactados por email, apresentam-se no escritório, na Rua de Costa Cabral, para uma sessão de informação e a entrega de material de trabalho – duas mochilas quadradas com o logótipo da empresa, um casaco impermeável, uma bateria portátil e um cartão para fazer alguns pagamentos.

Poucas horas são atribuídas aos novatos. Quanto mais entregas fizerem, mais horas poderão trabalhar. Há um sistema de pontos, que dependente da satisfação de parceiros e clientes. Jonathan já fez mais de 3200 entregas. Abrem-lhe a possibilidade de horário máximo. Pode trabalhar 13 horas por dia, se quiser. Se só lhe der jeito trabalhar 10, liberta as outras três. Outro estafeta pode apanhá-las. Quanto mais horas trabalhar, maior a hipótese de lhe calhar um serviço. É por serviço prestado que lhe pagam de 15 em 15 dias.

De cada vez que um estafeta responde a um pedido ganha 1,50 euros. Por cada quilómetro percorrido, outros 0,35. Os quilómetros são calculados tendo em conta a rota mais curta – desde o ponto onde se encontra até ao local de recolha e desde o local de recolha até ao local de entrega. Se tiver de esperar mais de dez minutos, pagam-lhe 0,05 euros por minuto. Se estiver a chover, um bónus de 30%. O PÚBLICO consultou vários recibos que confirmam estes valores.

Nos primeiros meses, Jonathan trabalhava o maior número de horas possível. Agora, trabalha um pouco menos. “O corpo pede.” E a namorada reclama. “Há dias que tenho tanto trabalho que não posso nem comer. Quando está a chover, todo o mundo pede comida. No Verão é fraco.” No Estio, muitos não conseguem garantir horas de trabalho suficientes para fazer vida. Ou vivem com o que juntaram nos outros meses ou procuram outra actividade. 

Nas horas vagas do curso superior

Nem toda a gente está tão disponível. Há quem trabalhe a meio-tempo, compatibilizando o serviço de entregas com outra actividade. Samantha Teixeira, por exemplo, concilia com o estudo de Engenharia Civil na Universidade do Porto (UP).

“Ao começo do semestre aproveitei muito porque não tinha muita coisa para estudar nem para fazer, trabalhava quase todos os dias”, diz a rapariga, de 22 anos. Duas a três horas de segunda a sexta, o dobro ao fim-de-semana. “Já depois começaram os trabalhos e os minitestes. É mais complicado, mas tenho de tirar tempo na mesma para trabalhar.” Um mês antes dos exames, trabalhava quase só ao fim-de-semana. “A minha prioridade desde sempre são os estudos.”

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andré rodrigues

Frequenta o 4.º ano. Começou por fazer o curso na Universidade Central de Venezuela, em Caracas. As greves tornaram-se demasiado frequentes. Pediu transferência para a Universidade Católica Andrés Bello. “Aquilo estava cada vez pior.”

Sentia que tinha de sair do país. Não só pela insegurança, a intermitência do ensino, a falta de perspectivas. “Eu queria independência. Eu queria fazer o meu dinheiro, comprar as minhas coisas. Já estava farta de pedir dinheiro aos meus pais para ir ao cinema ou para ir não sei onde. Se fosse com eles perto, muito melhor. Mas são as situações da vida que nos obrigam.”

Veio com o irmão, José, dois anos mais velho, que também está a estudar engenharia civil. Não podiam, simplesmente, pedir uma transferência para uma universidade portuguesa. Tinham primeiro de passar os exames nacionais. Só depois podiam pedir equivalências às cadeiras já feitas. Enquanto se preparavam, iam trabalhando. “Eu nunca tinha trabalhado na vida. Ganhar o meu salário foi … muito satisfatório.”

Era empregada de mesa num restaurante da Ribeira do Porto. Quando entrou na UP, em 2017, tratou de conciliar os estudos com essa actividade, que exercia à sexta-feira à noite e durante todo o dia de sábado e domingo. “Foi muito cansativo”, suspira. “É uma das razões pelas quais escolho Glovo. Posso fazer o meu horário. Se estou esgotada ou exausta dos estudos, consigo parar. Há uma flexibilidade.”

Não se arrependeu. “Se és jovem, estudante e queres fazer algum dinheirinho, a Glovo ou a Uber Eats ou outra empresa do género vale a pena. Consegues fazer o teu próprio horário, organizar a tua semana, o teu dia.”

Partilha um apartamento com o irmão e outros três luso-venezuelanos: a namorada do irmão, a irmã gémea e o irmão delas. À entrada do apartamento, alinham-se três grandes mochilas da Glovo – a de Samantha, a do irmão e a do “cunhado”.

Não deixa de sair à noite, se lhes apetecer. “Se queremos sair à noite é depois da Glovo. Trabalhámos até às dez, passamos por casa e saímos. Na realidade, não saio muito à noite, prefiro estar numa casa, relaxada, a tomar um vinho e a falar.”

“Tudo depende das horas"

Quando a agenda estava mais aliviada, tirava uns 300 euros por mês. Agora, cerca de metade disso. “Tudo depende das horas que fazes, dos pedidos que te caem. Como é uma aplicação aleatória, podes ter boa sorte ou má sorte.” Organiza a vida com isso e com a bolsa de estudo. “Também não tenho luxos.”

Quem lhe falou nisto foi uma amiga de longa data, Maria Alejandra Pita, estudante de Arquitectura na UP. Essa luso-venezuelana, de 24 anos, também fizera vários trabalhos antes de se decidir pelo serviço de entregas. Está a fazer cadeiras do 3.º e do 4.º ano. “Trabalhar numa plataforma em que posso escolher o horário é mais fácil”, afiança. “Às vezes marco a hora, mas não consigo, porque tenho de entregar um trabalho, falo e tiram a hora, não me penalizam.”

A resistência física também manda. Circula de bicicleta. “Sempre gostei de fazer exercício. Adoro! Comecei com uma bicicleta normal. Agora, tenho uma eléctrica. Ajuda a andar nos paralelos e a fazer as subidas. Antes, ficava um bocado morta.”

Trabalhando umas vinte horas por semana, consegue “pagar os gastos”. Trabalhando menos, fica “meio curta”. “Faço um esforço e consigo. Dá para viver.” Se não tivesse bolsa de estudo e não partilhasse apartamento com o primo, não dava.

A plataforma abre um horário para cada estafeta. E é dentro disso que cada um pode escolher as horas que quer trabalhar. Quando a Glovo não lhe abre horas suficientes, Alejandra liga-se à Uber Eats, outra plataforma digital de distribuição a operar na cidade, sem aquelas restrições de horário. “Na Glovo ganhas tudo o que fazes. Na Uber Eats ficam com 25% para eles. Na Glovo pagam o que ganhaste mais 23% de IVA. Na Uber Eats, o que ganhas já inclui o IVA.”

O pior que lhe aconteceu foi pedirem-lhe que transportasse 20 sacos de gelo. “Não conseguia nem andar. Era tanto peso que tiveram de ajudar-me a montar a mochila. Quando falei com os meus colegas todos disseram: tinhas de cancelar esse pedido, o máximo de podes carregar são oito quilos.”

Para Jonathan, a situação mais desconcertante foi a entrega de uma pizza a três raparigas que estavam com os copos e o convidaram a juntar-se a elas. Maus mesmo são os pedidos para comprar cigarros ou bebidas alcoólicas que têm do outro lado menores de idade. “Ligo para a Glovo: esta pessoa é menor, não vou entregar. E cancelo o pedido."

Cada um tem a sua história. A Tiago Ferreira Marques, português oriundo de Lisboa, já lhe aconteceu ir a um supermercado comprar uma lima para entregar. Teve outros pedidos semelhantes depois desse. Ainda há pouco, um pacote de esparguete. "A Glovo é isto. Um cliente pode pedir qualquer coisa.”