O fim dos Desafios

Depois de mais de 28 anos a marcar presença regular nas páginas do PÚBLICO, a secção Desafios chega ao fim este domingo. Aqui ficam os depoimentos de um dos seus autores desde o primeiro momento, José Paulo Viana, e do editor que decidiu trazer os desafios de matemática para o jornal, José Vítor Malheiros.

Foto
Cristina Sampaio

Gostava que o título desta crónica fosse “Para acabar em beleza”, mas tal não é possível. Não há beleza nenhuma em acabar os Desafios. Há mesmo uma certa tristeza. Mas avancemos e tentemos fazer um pouco da história desta secção.

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Gostava que o título desta crónica fosse “Para acabar em beleza”, mas tal não é possível. Não há beleza nenhuma em acabar os Desafios. Há mesmo uma certa tristeza. Mas avancemos e tentemos fazer um pouco da história desta secção.

“Para Começar” foi o título do primeiro que apareceu, a 8 de Março de 1990, no suplemento Hoje e Amanhã, coordenado por José Vítor Malheiros. Longe estávamos nós, o Eduardo Veloso e eu nos textos, a Cristina Sampaio nas ilustrações, de imaginar que a secção iria durar 28 anos, 10 meses e 5 dias (é assim que se diz, agora). No total, foram 1462 problemas. Se, naquele primeiro dia, nos tivessem dito que teríamos de arranjar mais de mil problemas, teríamos certamente desistido. Mas, afinal, com o correr do tempo e ao contrário do que esperávamos, tornou-se mais fácil criar novos enigmas e questões. Assim, manter a secção converteu-se num trabalho cada vez mais aprazível e estimulante.

A nossa filosofia foi a de propor desafios que apenas necessitassem de conhecimentos matemáticos elementares, mas que obrigassem a pensar e a encontrar estratégias de resolução nem sempre imediatas. É que o prazer de resolver problemas reside muitas vezes na descoberta de que podemos ir mais além do que aquilo que pensávamos ser capazes e na capacidade de ultrapassar obstáculos que, à primeira vista, nos parecem intransponíveis.

Passados os primeiros seis anos, Eduardo Veloso resolveu seguir para outras paragens (matemáticas, claro) e a responsabilidade deixou de ser repartida. Tivemos pena. Continuámos, a Cristina e eu. Tenho de fazer aqui uma constatação: a qualidade das ilustrações foi sempre uma característica marcante da secção e, para todos, os Desafios não seriam a mesma coisa sem aqueles belos desenhos.

Apesar de nunca termos fomentado as respostas e comentários dos leitores (não teríamos capacidade de responder adequadamente), a verdade é que nos foram sempre chegando ecos dos que nos acompanhavam semanalmente. No início eram as cartas, dirigidas ao cuidado do jornal. Nunca poderemos esquecer uma, vinda de uma aldeia transmontana, que começava desta maneira: “Estou no alto da serra, sentado no cimo de um penedo, a pensar no vosso problema e...” É também preciso destacar o leitor José Marques de Almeida, que, durante anos, enviou semanalmente a resolução do problema (antes de ela sair o número seguinte), com comentários sobre a dificuldade e a qualidade (ou falta delas) do desafio proposto. E fazia isto só pelo prazer de comunicar e partilhar a sua abordagem. Houve também outro tipo de leitores, os que nos comunicavam o que tinham descoberto. Uma vez, um leitor mandou-nos uma carta de muitas páginas com um processo da sua invenção para a trissecção de um ângulo usando apenas régua e compasso. Quando lhe respondemos que o método estava errado de certeza, porque foi demonstrado há mais de cem anos que tal coisa é impossível, respondeu-nos indignadíssimo e garantindo que nunca mais leria o que escrevêssemos. Não sabemos se cumpriu o prometido.

Depois, com o advento de novas tecnologias, começaram a aparecer mensagens electrónicas de pessoas que conseguiam descobrir o nosso endereço e nos enviavam correcções, métodos alternativos e sugestões de problemas. Vários dessas propostas transformaram-se em desafios da secção. Uma grande parte do nosso enriquecimento pessoal veio precisamente dessas mensagens, que nos mostravam como é rico o pensamento humano e como, muitas vezes, existem estratégias de resolução bem melhores que as que utilizámos. Neste capítulo, é preciso fazer um agradecimento muito especial aos leitores Alberto Leite, Delfim Guedes, João Brandão, João Gonçalves, João Sá, José Ruela e Mário Lino. Os Desafios não seriam os mesmos sem estes contributos. E eu também não.

Numa tentativa de prolongar a efémera vida dos textos de um jornal foram publicados, pela Editora Afrontamento, dez livros com o título Desafios, recolhendo os problemas dos 14 primeiros anos.

Vale também a pena salientar o facto de muitos professores terem, ao longo destes tempos, usado os Desafios quer nas suas aulas quer nos clubes de Matemática como forma de desenvolver nos alunos as suas capacidades de raciocínio e o gosto pela resolução de problemas.

Todos os anos, no encontro nacional da Associação de Professores de Matemática, existe o concurso “O Problema do ProfMat”. Desde 1990, o problema proposto foi o desafio saído nessa semana no jornal PÚBLICO.

No final de 2014, coincidindo com as bodas de prata desta secção, foi atribuído ao trio de fundadores dos Desafios o Prémio Ciência Viva para os Media. Foi uma surpresa e uma alegria este reconhecimento público do valor e interesse do nosso esforço de 25 anos.

E pronto, é o final, neste local e neste formato, de um trabalho que tanto prazer nos deu. Mas não podemos ir embora sem deixar os leitores a pensar. A pensar no que se passou e a pensar neste pequeno problema, da autoria de Lewis Carroll, que deve ser resolvido mentalmente (e depois confirmado experimentalmente).

Temos duas moedas de um euro, encostadas lado a lado, ambas com a face “1” à vista e com o número a apontar para cima, tal como se vê na figura. A moeda da direita vai ficar fixa. A da esquerda vai rodar em torno da outra, sem escorregar, até passar para o lado contrário.

O número “1” da moeda que rodou vai ficar virado para cima ou para baixo?

José Paulo Viana

Foto
Cristina Sampaio

 

28 - 10 - 5 = ?

Há um paradoxo interessante na matemática.

(Para evitar que amanhã tenha uma turba de matemáticos a fazer-me uma espera à porta de casa gritando-me “UM paradoxo interessante? UM? Então e os paradoxos de Zenão? E o paradoxo das batatas desidratadas? E o...” quero explicar desde já que não me refiro a um paradoxo matemático, mas a um paradoxo que se manifesta à volta da matemática.)

Esse paradoxo é o facto de, a par da péssima reputação da matemática na população escolar em geral, existir um interesse entusiástico pela divulgação matemática e pelos jogos matemáticos em largos sectores do público. Os quebra-cabeças despertam paixões que podem durar uma vida inteira (xadrez, go, sudoku, nonogramas...) porque, felizmente, uma quantidade apreciável de seres humanos gosta de pensar e de resolver problemas e é isso que a matemática faz e ensina a fazer. É verdade que uma grande parte desse interesse existe apenas porque esta matemática que empolga tantos milhões de pessoas é apresentada com nomes como “quebra-cabeças”, “jogos”, “enigmas”, “problemas lógicos” e coisas semelhantes. Mas foi precisamente essa a estratégia adoptada desde o seu início pela secção semanal de problemas matemáticos a que o PÚBLICO hoje põe fim, os Desafios, que tive o prazer de lançar em 1990, no arranque deste jornal, como editor do suplemento Hoje e Amanhã.

Os Desafios, que terminam hoje uma carreira longa de 28 anos, 10 meses e 5 dias, tiveram como autores os matemáticos José Paulo Viana e Eduardo Veloso, incansáveis entusiastas, e como ilustradora Cristina Sampaio, cujo estilo gráfico marcou indelevelmente a secção, com humor e inteligência. Todos estão de parabéns. Os Desafios foram sempre bons ou muito bons, muitas vezes excelentes e possuem um currículo e um grupo de seguidores invejável. Não devem ser muitas as secções, na imprensa mundial, que duram tanto tempo, com tanto sucesso e que suscitaram tantas edições sob a forma de livro. Não sabemos quantas aulas de matemática os Desafios conseguiram tornar interessantes, quantas discussões alimentaram, quantos jovens descobriram com eles que a matemática podia ser divertida e... desafiante. Mas sabemos que foram muitas e muitos.

O progresso desejável (num jornal ou numa sociedade) não é a contínua substituição das coisas que existem por coisas novas, mas um processo de apropriação e reforço das coisas boas e o alijamento das coisas menos boas, num processo selectivo e evolutivo que possibilita um contínuo melhoramento e uma contínua adaptação em vez de um eterno recomeço. Seria bom que os Desafios pudessem encontrar outro poiso e continuar, numa forma eventualmente diversa, o excelente trabalho que fizeram até aqui. As coisas boas não devem ser apenas celebradas. Devem ser preservadas e desenvolvidas. 

José Vítor Malheiros