Uma lapalissada sobre Goucha e Mário Machado
“Aquilo” não foi uma entrevista. Houve umas perguntas para promover Mário Machado e uma conversa para entreter.
Uma coisa são programas de entretenimento, outra são programas de jornalismo. Perdoem-me a lapalissada. Não queria escrever sobre a ida do neonazi Mário Machado à TVI porque já foi tudo dito. Mas as palavras “jornalista” e “entrevista” têm sido tão mal usadas que não resisti.
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Uma coisa são programas de entretenimento, outra são programas de jornalismo. Perdoem-me a lapalissada. Não queria escrever sobre a ida do neonazi Mário Machado à TVI porque já foi tudo dito. Mas as palavras “jornalista” e “entrevista” têm sido tão mal usadas que não resisti.
Mário Machado não foi entrevistado pela TVI. Ele foi conversar num programa de entretenimento e esse foi o erro. A causa do erro foi a cultura do vale tudo em nome das audiências. A consequência do erro foi apresentar um gangster neonazi cadastrado como vítima do sistema judicial português.
A única coisa boa é que, como estamos uns degraus acima da democracia da Indonésia, o erro pode ser usado para elevar os standards éticos da indústria do entretenimento televisivo.
O principal trabalho a fazer é eliminar o nevoeiro. Misturar comercial, entretenimento e jornalismo dá mau resultado. Tratar com a mesma leveza um dentista que vai falar de higiene oral e um neonazi condenado e orgulhoso do seu passado é adensar o nevoeiro. Quando há nevoeiro, não vemos bem e nada é claro. Perguntam-nos “o que é aquilo?” e não conseguimos responder.
Neste caso, “aquilo” não foi uma entrevista. Houve uma conversa para promover Mário Machado e depois uma conversa para entreter. Jornalismo é outra coisa. Não se percebe se a rúbrica agora cancelada era um espaço de opinião ou o quê. Mas o tom de curiosidade neutra que o “repórter” usou não é jornalismo: “Quem é Mário Machado?”, “Porque é que quer ser um novo Salazar?”, “Em 1995, foi preso porquê?”.
O debate não é sobre liberdade de expressão. Nem sobre a dificuldade de ouvir ideias diferentes. Nem sobre se Mário Machado deve ser entrevistado numa televisão. Nem sobre programação televisiva diversificada. O debate é sobre o nevoeiro. Em Sintra, o nevoeiro é sempre bonito. Nos media, é sempre mau. Esconde as fronteiras e dilui as responsabilidades dos ofícios. Não se percebe o que é jornalismo, o que é diversão, o que é comercial, o que são conteúdos pagos, as diferenças entre conversas e entrevistas. O nevoeiro cria híbridos e os híbridos fazem mal à democracia porque puxa para baixo os critérios de exigência dos cidadãos.
Tal como não pedimos que a cobertura jornalística de uma cimeira da NATO seja divertida, também não pedimos que as conversas de Manuel Luís Goucha ganhem um Pulitzer. Uma coisa é entretenimento, outra é jornalismo. Eles podem cruzar-se, mas isso só pode acontecer se houver clareza.
A conversa na TVI teve falhas, omissões e um pobre contraditório sobre questões cruciais da ditadura e do passado criminal de Machado. Mas Goucha não estendeu uma passadeira a Mário Machado, nem o cobriu de salamaleques e paninhos quentes.
Nunca tinha visto “o Goucha” e estava convencida de que o programa se chamava Praça da Alegria. Agora que me obriguei a ver Você na TV! — é esse o nome — senti algum alívio. Goucha acredita na democracia com paixão e criticou Salazar e o Estado Novo com garra. A primeira pergunta que fez a Machado foi esta:
— Porque é que acha que precisamos de um novo Salazar? Diz que [no Estado Novo] ninguém era preso dois anos e meio por escrever um texto. Então não?!! As pessoas eram exiladas porque tinham opiniões diferentes, porque tinham pensamentos que divergiam do pensamento único!
Mas Goucha não é jornalista. A sua tarefa é divertir e entreter. No documentário O Acto de Matar (2012), Joshua Oppenheimer mostra como os “assassinos profissionais” de comunistas da ditadura indonésia de Sukarno (foram mortos 500 mil) vão hoje aos programas de entretenimento da televisão e ali explicam a forma mais eficaz de usar um garrote para matar alguém sem sujar o chão. Todos riem à gargalhada: os velhos criminosos, os jovens entertainers de TV e a audiência no estúdio. Ninguém estranha, é tudo normal.
Em Portugal, a televisão da manhã ainda existe para distrair e ajudar a passar o tempo. Diz-se que é feita para “o país real e não o país do Príncipe Real”. Isso nunca percebi. Quando vou ao Príncipe Real, tudo me parece verdadeiro: os antiquários, a creche da Santa Casa da Misericórdia, os reformados que jogam às cartas e gritam palavrões, os turistas, os miúdos arty e os miúdos que andam à procura de campainhas de cobre para roubar.
O Goucha fala para uma grande fatia de Portugal e por isso é que o trabalho de limpar o nevoeiro é importante. Imagino que entre os seus espectadores haja alguns dos 499.936 analfabetos de Portugal (censo de 2011), dos 1,1 milhões de idosos que só têm o 1.º ciclo do ensino básico (2017) e dos 45.516 idosos registados na última operação da GNR Censos Sénior (2017), dos quais 28.279 vivem sozinhos, 5124 vivem isolados e 3521 vivem sozinhos e isolados.
Quem viu o programa percebeu que Goucha não gosta nem de Salazar nem das ideias de Mário Machado. Mas quem não o conhecia, ficou sem perceber que Machado é um neonazi a tentar reabilitar-se. Não era preciso um jornalista de investigação. Qualquer jornalista faria um guião melhor. Ainda há pouco tempo vimos Machado fazer para uma câmara de televisão aquele gesto do dedo indicador a atravessar a garganta como quem ameaça degolação. Não foi em 1995. Foi em 2018.