Direitos humanos devem desempenhar “papel decisivo” nos acordos comerciais
O respeito pelos direitos humanos está vertido em acordos de comércio e pode ser motivo para a sua suspensão, mas as regras têm sido ignoradas para alcançar condições mais favoráveis, aponta o presidente da subcomissão de Direitos Humanos do Parlamento Europeu, Antonio Panzeri.
Os direitos humanos não podem ficar à margem das políticas, mas sim “como parte integrante e essencial de qualquer política europeia”, sublinha o presidente da subcomissão de Direitos Humanos do Parlamento Europeu (PE), Antonio Panzeri. A começar, desde logo, pela política comercial, na qual o eurodeputado italiano considera que os direitos humanos “devem desempenhar um papel decisivo”. Os acordos comerciais “devem ter em conta a promoção da democracia, os direitos das minorias, o primado do direito e a igualdade de género”, detalha.
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Os direitos humanos não podem ficar à margem das políticas, mas sim “como parte integrante e essencial de qualquer política europeia”, sublinha o presidente da subcomissão de Direitos Humanos do Parlamento Europeu (PE), Antonio Panzeri. A começar, desde logo, pela política comercial, na qual o eurodeputado italiano considera que os direitos humanos “devem desempenhar um papel decisivo”. Os acordos comerciais “devem ter em conta a promoção da democracia, os direitos das minorias, o primado do direito e a igualdade de género”, detalha.
A questão é de princípio, segundo o eurodeputado italiano eleito pelo Movimento Democrático e Progressista: “A União Europeia não está autorizada a fazer vista grossa em situações em que os direitos humanos são espezinhados para serem sacrificados no altar da real politik. Uma atitude deste tipo arrasa com todos os valores fundamentais nos quais a nossa União se deve basear”.
E em teoria, isto já é verdade: os acordos bilaterais de comércio, celebrados entre a União Europeia (UE) e países terceiros ou organizações regionais incluem uma cláusula que define o respeito pelos direitos humanos como “elemento essencial” e a cooperação pode ser suspensa em caso de incumprimento. Mas se estas “regras já estão em vigor”, reconhece Antonio Panzeri, “infelizmente, em alguns casos, elas são ignoradas para conseguir acordos mais favoráveis”.
A UE tem preferido incentivar a mudança, sem a impor à partida. O acordo comercial assinado entre a União Europeia e o Vietname, em Outubro último, por exemplo, foi alvo de críticas devido à falta de liberdade política que vigora naquele país asiático. A comissária europeia do Comércio, Cecilia Malmström, admitiu à data, em declarações aos jornalistas, citadas pelo site Euroactiv, que o acordo não transformaria o país numa democracia “do dia para a noite”, mas frisou que esta era uma das ferramentas da UE para promover esse progresso.
Em relação a países em desenvolvimento, a UE tem mesmo um regime específico (Sistema Generalizado de Preferências, conhecido como GSP), que abrange actualmente 90 países, e através do qual vincula estes países a respeitar os direitos humanos e normas laborais, em troca de um acesso preferencial (com tarifas reduzidas) ao mercado europeu. Este acesso privilegiado pode ser retirado em caso de violação sistemática e maciça destes direitos ou normas.
Foi essa avaliação que levou a Comissão a anunciar, também em Outubro de 2018, a abertura de um procedimento para suspender as condições preferenciais dadas ao Camboja, na sequência da reeleição do primeiro-ministro Hun Sem – no poder há mais de três décadas – e da ilegalização da oposição política no país. Na mesma altura, foi decidido o envio de uma missão de investigação a Myanmar para avaliar se a violação dos direitos humanos da minoria Rohingya justificava a aplicação de eventuais sanções. “A nossa política comercial é baseada em valores”, justificou então Cecilia Malmström, citada pela agência Reuters. “Temos de agir quando há violações severas”.
Esta decisão só surgiu, contudo, após meses de alertas de organizações de direitos humanos e da pressão do próprio Parlamento Europeu: aprovou várias resoluções condenando os ataques à comunidade Rohingya (a última das quais em Junho de 2018), exigiu à Comissão, em Setembro, que tirasse consequências da missão de investigação enviada ao Camboja, e condenou ainda a detenção do líder da oposição política, Kem Sokha (entretanto libertado sob fiança).
E estes exemplos são a excepção e não a regra. Desde que o regime GSP existe, a suspensão das condições preferenciais só foi accionada três vezes (Myanmar, em 1997; Bielorrússia em 2007; Sri Lanka em 2010), como sublinha um briefing do serviço de investigação do PE de Maio de 2018. Outros processos de investigação foram abertos (em Salvador, em 2008 e na Bolívia, em 2012) mas não deram origem a sanções. Algumas queixas anteriores não foram sequer investigadas. Por outro lado, a anulação de condições preferenciais não implica que as trocas comerciais sejam suspensas, apenas que o país deixa de beneficiar deste regime de incentivos.
Um estudo académico publicado em 2014 já vincava a inconsistência da UE neste domínio, caracterizando a monitorização do cumprimento das cláusulas de direitos humanos como “particularmente errática, gerando suspeitas de pusilanimidade e de critérios diferenciados” consoante o país.
Ora, para Antonio Panzeri, a questão dos direitos humanos não pode ser desvalorizada: “a defesa dos direitos humanos tem sido um valor chave da União Europeia desde a sua fundação”, recorda. “É fundamental que estes [acordos] garantam que existem leis justas aplicáveis aos trabalhadores, por exemplo, ou que eleições políticas são realizadas periodicamente”.
Uma atitude necessária em resposta aos desafios emergentes: a UE já “faz muito” pelos direitos humanos, reconhece o eurodeputado, mas a situação no mundo é hoje mais “complexa” e exige, por isso, uma acção “mais decisiva e concreta” da Europa, para que os direitos humanos não fiquem na sombra. “Nos últimos anos, o mundo parece estar dominado por uma onda de “securitização”, observa, e “sob a liderança de líderes populistas, os direitos humanos e as liberdades civis estão a ser sacrificados em nome de uma suposta crescente necessidade de segurança”.
Financiamento muda
E se há “muito que pode ser feito para melhorar”, a acção da União Europeia neste domínio, esta não se esgota na política comercial. O apoio a organizações da sociedade civil e activistas que lutam em prol de direitos humanos e liberdades fundamentais é uma das vertentes de actuação e, aqui, a UE já desempenha “um papel importante”.
Através do Instrumento Europeu para a Democracia e os Direitos Humanos (IEDDH) – cuja dotação é de 1,3 mil milhões de euros para o período 2014-2020 – são atribuídas subvenções de emergência a activistas em risco, financiados projectos e ONG em países terceiros ou concedido suporte financeiro a entidades chave como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos ou o Tribunal Penal Internacional.
Mas, a partir de 2021, a arquitectura financeira da política externa europeia vai mudar e o IEDDH vai passar a integrar um instrumento financeiro mais amplo “que pode fazer variar a nossa eficácia no campo dos direitos humanos”, observa Antonio Panzeri.
A proposta para o novo Instrumento Europeu de Vizinhança e Parceria foi apresentada em Junho pela Comissão Europeia e agrega nove fundos e instrumentos financeiros diferentes, nomeadamente ligados à cooperação para o desenvolvimento, à promoção de paz e estabilidade no mundo e aos direitos humanos. O objectivo desta simplificação é facilitar a capacidade de resposta da União a desafios globais cada vez “mais complexos, multidimensionais e de evolução rápida”. O volume financeiro destinado aos direitos humanos e democracia mantém-se equivalente ao do último período.
Sem pôr em causa a necessidade de criar novos instrumentos “abrangentes e flexíveis” para “atingir os objectivos” e “superar lacunas e inconsistências”, que resultam de múltiplos instrumentos com aplicação geográfica diversa e focando diferentes temáticas, o presidente da subcomissão de Direitos Humanos entende que é igualmente necessário “aumentar a transparência e a governança do PE” para garantir a sua eficácia.
A proposta é que o PE tenha um papel reforçado e, através de actos delegados, possa intervir na definição de programas multianuais que estabeleçam “áreas prioritárias, objectivos, resultados esperados, alocações financeiras previstas e modalidades de cooperação”. As comissões parlamentares de Desenvolvimento e de Assuntos Externos do PE – a subcomissão de Direitos Humanos integra esta última – estão a trabalhar em conjunto na proposta e o projecto de relatório será votado no próximo dia 4 de Fevereiro.
A integração do IEDDH no novo Instrumento Europeu de Vizinhança e Parceria já foi contestada por um conjunto de redes de organizações não-governamentais de direitos humanos. Numa carta conjunta, enviada em Junho passado, apelavam à manutenção de instrumentos separados, nomeadamente na área dos direitos humanos e de apoio ao desenvolvimento, considerando que a complementaridade e a coordenação podiam ser reforçadas sem a fusão dos mesmos. Na missiva, questionavam ainda a capacidade do novo instrumento manter “níveis adequados de previsibilidade, transparência e prestação de contas” face aos compromissos da UE neste domínio.
Manter pressão internacional
Para além de pressionar e supervisionar a aplicação de medidas por parte da União Europeia, o PE tem também os seus instrumentos próprios para alertar para a violação de direitos humanos. Através da aprovação de resoluções urgentes, tem vincado a sua posição em relação a abusos concretos e contribuído, em alguns casos, para um desenlace positivo. “As resoluções urgentes são uma ferramenta muito importante para o PE porque permitem actuar rapidamente em casos específicos, seja exercendo pressão sob atores externos”, realça Antonio Panzeri, seja “ajudando a alertar a opinião pública para a violação de direitos humanos”.
Só em 2018, foram aprovadas, pelo menos, 12 resoluções urgentes pelo PE, segundo dados do Serviço de Investigação do PE, exigindo, por exemplo, a libertação incondicional do ucraniano Oleg Sentsov, condenando a repressão de defensores dos direitos das mulheres na Arábia Saudita ou repudiando o julgamento de jornalistas em Myanmar, entre outras.
O trabalho não termina com a aprovação das resoluções. O PE pode solicitar relatórios de monitorização ao Serviço de Acção Externa da União Europeia, para avaliar a evolução da situação e, em função disso, determinar novas linhas de acção. “Damos muita atenção a estes casos”, garante.
O esforço não tem sido em vão. “Em vários casos, a intervenção do PE permitiu dar passos importantes, como a libertação de presos políticos ou a regularização de situações que violavam os direitos humanos”, observa.
É impossível estimar o real impacto do PE nestes casos, mas a sua actuação mantém viva a pressão mediática e a atenção internacional sobre alguns deles. É o caso do ativista Nabeel Rajab, do Bahrein, que já fora detido por diversas vezes, em 2012, por criticar o governo e que, atualmente, está de novo atrás das grades, após ter sido condenado a cinco anos de cadeia. Uma nova resolução do PE, exigindo a sua libertação incondicional, foi aprovada em Junho do último ano.
Já em Novembro, a paquistanesa Asia Bibi recuperou a liberdade, após ter passado oito anos no corredor da morte, na sequência de uma condenação por blasfémia. A sentença motivara protestos de diversas organizações internacionais e o próprio presidente do PE, Antonio Tajani, exigiu, em plenário, que ela tivesse “um julgamento justo”, apelando ao “fim da discriminação religiosa”.