A impossível liberdade de expressão
Uma longa e inflamada discussão pública a propósito de uma entrevista, na TVI, a um indivíduo sinistro, praticante e defensor da violência racista cujo nome não me apetece pronunciar, mostrou com evidência que isso da “liberdade de expressão” é uma questão muito complicada, submersa num excesso de discursos, e requer uma sofisticada análise crítica. Podemos resumir de maneira simplificada a discussão identificando duas posições antagónicas: de um lado, estão aqueles a que podemos chamar os puristas ideólogos da liberdade de expressão, para os quais esta tem uma razão em si mesma que não admite constrangimentos. Mas, como foi fácil perceber, esta posição é muito facilmente posta ao serviço de uma razão táctica, formulada nos temos de uma concepção negativa que se traduz nos seguintes termos: “se não este, então também não aquele”. E, nesta operação retórica onde se compara muitas vezes o incomparável, é sempre fácil subentender uma falsa imparcialidade.
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Uma longa e inflamada discussão pública a propósito de uma entrevista, na TVI, a um indivíduo sinistro, praticante e defensor da violência racista cujo nome não me apetece pronunciar, mostrou com evidência que isso da “liberdade de expressão” é uma questão muito complicada, submersa num excesso de discursos, e requer uma sofisticada análise crítica. Podemos resumir de maneira simplificada a discussão identificando duas posições antagónicas: de um lado, estão aqueles a que podemos chamar os puristas ideólogos da liberdade de expressão, para os quais esta tem uma razão em si mesma que não admite constrangimentos. Mas, como foi fácil perceber, esta posição é muito facilmente posta ao serviço de uma razão táctica, formulada nos temos de uma concepção negativa que se traduz nos seguintes termos: “se não este, então também não aquele”. E, nesta operação retórica onde se compara muitas vezes o incomparável, é sempre fácil subentender uma falsa imparcialidade.
Um artigo muito citado, publicado na Boston Review e depois incluído num livro de 1994, de um famoso professor de literatura inglesa numa universidade dos Estados Unidos e cronista do New York Times, Stanley Fish, é um contributo valioso para discutir esta questão. Esse texto intitula-se There’s No Such Thing as Free Speech, and it’s a Good Thing, Too (o livro onde ele foi republicado, juntamente com muitos outros, tem o mesmo título).
Stanley Fish cita a Constituição americana que proclama, na sua Primeira Emenda, a “freedom of speech”, como um valor e um direito que nenhuma lei pode limitar. Aparentemente, a Primeira Emenda consagra de maneira absoluta a liberdade de speech (palavra que não pode ser traduzida por “expressão”). Para proteger a liberdade de speech é necessário encontrar critérios de identificação desse “discurso” protegido, sem os quais, como escreve Fish, não pode haver nenhuma lei que o proteja uma vez que ninguém sabe ao certo a que corresponde a própria noção de speech. Por isso, aliás, é que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos incluiu na esfera de protecção da Primeira Emenda formas de expressão que não relevam da palavra, enquanto que certas palavras (as injúrias, por exemplo) não estão protegidas. Ora, Fish defende precisamente uma regulação, um controle do discurso contra os puristas do “free speech”, por razões coerentes com a sua concepção pragmática da linguagem, a ideia de que é empiricamente falso que pronunciamos frases para solicitar, como resposta, outras frases, elidindo que há uma acção inerente a essas frases. Quando dizemos algo a outra pessoa, há aí uma intenção instrumental, estamos a tentar fazer alguma coisa. Deste ponto de vista de uma pragmática da linguagem, é então possível dizer que não existe tal coisa chamada “free speech”, na medida em que não há um discurso que não tenha como razão algo mais que a sua própria produção (e, neste ponto, conviria acrescentar: o que se passa com a palavra literária?). Neste sentido, a ideia de free speech é não só uma impossibilidade conceptual (ela só seria realizável na condição de se subtrair à significação), mas também é indesejável (“... and it’s a good thing too”).
Mas Fish, explicitando o que quis dizer nesse artigo, vai mais longe: aqueles que proferem discursos racistas não aceitam a designação de racistas, não acordam de manhã e dizem para si mesmos: “Hoje vou proferir um discurso racista”. O que eles dizem é: “Hoje, vou sair e dizer a verdade.” E é porque os racistas não se pensam a si mesmos como racistas que o discurso de ódio ou discurso racista não é um erro corrigível. Daí que, segundo Fish, a resposta correcta a uma visão que é capaz de reivindicar a liberdade de expressão para praticar as suas acções criminosas não consiste em tentar curá-la ou fazer com que os seus seguidores se sentem a ler On Liberty, de John Stuart Mill, como parecem advogar aqueles que caem no pressuposto universalista liberal. A única maneira de combater o discurso de ódio racista é reconhecê-lo como o discurso do inimigo — um discurso que precisa de ser eliminado porque ele é, em si mesmo, uma acção. Com efeito, there’s no such thing as free speech, and it’s a good thing.