Josef Nadj: de Beckett a Kafka
A obra do coreógrafo, com a linguagem dos clowns, da mímica e das marionetas, encontra-se pejada de referências literárias. Tendo criado a partir de Büchner ou Borges, a presença de Beckett e Kafka estende-se a muitas das suas criações.
Josef Nadj chegou a Paris em 1980 e no seu corpo levava a prática de artes marciais na sua terra natal, Kanjiza (na actual Sérvia), e a formação em Belas Artes prosseguida em Budapeste. Não sabendo exactamente o que fazer a esses primeiros alicerces ainda frágeis, foi em busca de outras linguagens, passou pela escola de mímica Etienne-Decroux e teve aulas com Marcel Marceau, referência fundamental dessa expressão. Aos poucos, intui que o seu percurso terá de passar pela dança contemporânea e torna-se intérprete de peças de Mark Tompkins, Catherine Diverrès ou François Verret.
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Josef Nadj chegou a Paris em 1980 e no seu corpo levava a prática de artes marciais na sua terra natal, Kanjiza (na actual Sérvia), e a formação em Belas Artes prosseguida em Budapeste. Não sabendo exactamente o que fazer a esses primeiros alicerces ainda frágeis, foi em busca de outras linguagens, passou pela escola de mímica Etienne-Decroux e teve aulas com Marcel Marceau, referência fundamental dessa expressão. Aos poucos, intui que o seu percurso terá de passar pela dança contemporânea e torna-se intérprete de peças de Mark Tompkins, Catherine Diverrès ou François Verret.
Se é aí que estabelece a espinha dorsal da criação que começará a desenhar a partir da estreia de Canard Pékinois, em 1987, afirmando uma linguagem coreográfica singular, não tardará a abastecer-se das mais variadas referências literárias, cruzando-as poeticamente com memórias da sua terra natal e com reflexões veladas sobre a História europeia. Otto Tolnai, Gyula Kodolani ou George Büchner atravessam-se na sua abordagem ao movimento, no caso deste último por via de uma leitura muito livre de Woyzeck em Woyzeck ou l’Ébauche du Vertige (1994). Referindo-se ao texto de Büchner como “um enigma colocado” há muito no seu caminho, Nadj explorava então os quatro rascunhos deixados pelo dramaturgo alemão antes da sua morte aos 23 anos que, apesar dessa condição pouco final, se tornaram uma peça fundamental do reportório teatral contemporâneo. Do material inacabado, e respeitando a natureza dos escritos de Büchner, Nadj faria uma matéria dançada fragmentária.
Ainda assim, seriam as obras de Kafka e de Beckett a revelar-se de forma mais persistente no seu trajecto. Mesmo ao partir da obra da escritora húngara Géza Csáth para criar Comedia Tempo (1990), o elenco de figuras masculinas imprecisas de fato e chapéu pretos parecia saído directamente de um ensaio de À Espera de Godot. Mas a claríssima marca desse universo chegará depois de passar também pela obra do escritor argentino Jorge Luis Borges em Les Commentaires d’Hababuc (1996), com a sua homenagem para oito intérpretes a Beckett, intitulada Le Vent dans le Sac (1997). Voltava a Vladimir e Estragon, de Godot, mas evocava também a presença de Winnie, de Dias Felizes, graças a uma actriz enfiada num vaporoso vestido a lembrar a prisão de areia (do quotidiano) que soterra a personagem.
Sobre Le Vent dans le Sac, escrevia-se então que as personagens “esgotam o seu tempo com acções absurdas e proezas inúteis”, sendo descritos como elementos da sintaxe beckettiana “sacos de juta, uma árvore ou figurinos pretos”. À Folha de São Paulo, Nadj afirmava, em entrevista, que a leitura de Divina Comédia de Dante fez também parte da preparação de autor e elenco para a peça (sabendo da admiração de Beckett pelo livro de Dante), frisando que o autor irlandês “tinha certas angústias na sua vida e na sua obra que não tentamos contornar”. “Tentamos desenhar as figuras de palhaços de Beckett, coloridas com humor negro e com a angústia diante do ser, do tempo, do lugar e do destino do homem”.
É sobretudo tudo quanto diz respeito a uma presença desorientada, deslocada e mergulhada em memórias distantes e fugidias dos intérpretes que Nadj se relaciona com peças como Godot, Dias Felizes ou Fim de Partida, parecendo largar as personagens num espaço que não existe, um lugar sem cabimento no mundo. “É a clareza das palavras, essa qualidade de Beckett se exprimir para se dirigir ao nada, ao quase nada, ou às coisas insignificantes”, é isso que lhe interessa, esclarece Nadj questionado pelo Ípsilon. “Acaba por abrir outros espaços de reflexão e a exigência da escrita mantêm-se sempre até chegar à negação da palavra. Beckett vai até aqui.”
Essa “negação da palavra”, que encontramos nos vários Actos sem Palavras do autor irlandês, relaciona-se também com a linguagem dos clowns, da mímica e até das marionetas que tanto seduzem Josef Nadj – e que são também a direcção para onde se encaminha a criação de pequenas formas que tomou conta da sua obra mais recente. Daí que seja fácil encontrar vestígios do universo beckettiano em Paysage Inconnu (2014) ou em Mnémosyne (2018) – a exposição / performance que agora ocupa o Mosteiro São Bento da Vitória, no Porto –, nos ambientes criados mas também na absoluta meticulosidade da sua interpretação.
Depois de Beckett inspirar Le Vent dans le Sac, Josef Nadj virou-se para outra das suas maiores referências literárias (que considera quase omnipresente), o checo Franz Kafka. Les Veilleurs (1998) era então uma coreografia inscrita num “universo negro, mecânico onde os elementos do cenário e os homens de chapéu preto entram uns pelos outros, como se os objectos ganhassem alma ou como se os humanos se tornassem objecto”. Em Mnémosyne, também os objectos parecem vivos e os seres esvaídos de vida adquirem a qualidade dos objectos. No fundo, o diálogo de Nadj com a literatura é ininterrupto. Nalguns momentos, acontece simplesmente que a influência aparece sob a forma de homenagem oficial. Nos outros, há que sujar um pouco as mãos e descobrir onde se colam as recorrentes figuras e os constantes ambientes “roubados” à literatura.