A mulher (com pigmento azul nos dentes) que iluminava manuscritos

Equipa internacional de cientistas analisou a placa dentária fossilizada de uma mulher do tempo medieval e encontrou resíduos de lápis-lazúli, usado nos manuscritos iluminados que se julgava serem produzidos apenas por homens.

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Maxila inferior da mulher com pigmento de lápis-lazúli no tártaro dentário Christina Warinner

Esta história envolve uma mulher que viveu na Idade Média, algures entre o início do século XI e início do século XII, e que teria entre 45 e 60 anos quando morreu num mosteiro esquecido no meio da Alemanha rural. O cenário coloca esta mulher religiosa no velho edifício, que acabou por ser destruído por um incêndio, a decorar livros escritos à mão com desenhos iluminados, numa tarefa e função que se julgava reservada a homens religiosos. Coloca-a, mais especificamente, a pintar com um raro e caro pigmento azul e, de vez em quando, a lamber a ponta do pincel ao pintar.

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Esta história envolve uma mulher que viveu na Idade Média, algures entre o início do século XI e início do século XII, e que teria entre 45 e 60 anos quando morreu num mosteiro esquecido no meio da Alemanha rural. O cenário coloca esta mulher religiosa no velho edifício, que acabou por ser destruído por um incêndio, a decorar livros escritos à mão com desenhos iluminados, numa tarefa e função que se julgava reservada a homens religiosos. Coloca-a, mais especificamente, a pintar com um raro e caro pigmento azul e, de vez em quando, a lamber a ponta do pincel ao pintar.

Com um pouco de imaginação à mistura, a reconstituição é feita por uma equipa internacional de cientistas que encontrou resíduos de lápis-lazúli na placa dentária fossilizada desta mulher. O artigo é publicado na revista Science Advances e desafia os pressupostos generalizados sobre os manuscritos iluminados confirmando-se que, afinal, não eram só feitos por homens.

Os seus livros terão a marca de um raro e caro pigmento azul, o mesmo que agora foi encontrado na sua placa dentária. “Com base na distribuição do pigmento na sua boca, concluímos que o cenário mais provável era ela mesma pintar com o pigmento e lamber a ponta do pincel ao pintar”, revela Anita Radini, investigadora da Universidade de York (Reino Unido) e uma das autoras do artigo. A citação da cientista está num comunicado de imprensa do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana, na Alemanha, que relata a descoberta da primeira prova que permite concluir que as mulheres da época medieval também se dedicavam a decorar livros escritos à mão, os manuscritos iluminados.

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Pedra lápis-lazúli Christina Warinner

Os cientistas encontraram o raro pigmento azul-vívido (tão caro quanto o ouro no período medieval europeu) no tártaro dentário da mulher enterrada. “A nova descoberta sugere que o cálculo dentário, ou tártaro, pode ser usado para ajudar na identificação historicamente difícil de escribas e artistas no registo arqueológico e pode lançar luz sobre o papel das mulheres na produção de livros sagrados”, refere o resumo do artigo.

Lápis-lazúli vindo do Afeganistão

O pigmento azul mais caro usado durante o período medieval europeu (séculos V a XV) para manuscritos luxuosos foi o ultramarino, pigmento que é feito a partir da moagem e purificação de cristais de pedra lápis-lazúli extraída de uma região específica do Afeganistão. Era, garantem os cientistas, usado apenas por “escribas e pintores de imensa habilidade”.

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Pigmento da pedra lápis-lazúli Christina Warinner

A descoberta de partículas de cor azul encapsuladas no cálculo dentário de uma mulher enterrada ao lado do complexo de um mosteiro e uma igreja medieval em Dalheim, Lichtenau, na Alemanha, data de 2014. Os dentes datados por radiocarbono apontam para o ano 997 até ao ano 1162. Mais de 100 fragmentos de partículas minerais que se encontravam nos dentes da mulher foram analisados. “Pedaços de partículas azuis de diferentes dentes foram observadas, sugerindo que as partículas entraram no cálculo ao longo do tempo, e não durante um único momento”, nota o artigo, que conta ainda que usaram a técnica de espectroscopia para analisar as partículas e descobriram uma correspondência positiva com o pigmento lápis-lazúli.

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Partículas ampliadas de lápis-lazúli presentes no tártaro dentário da mulher Monica Tromp

A conclusão era inevitável: aquela mulher era “provavelmente um escriba ou pintora de livros, que criou manuscritos ou foi contratada para preparar os materiais dos artistas”. Este estudo, sublinham os autores, é uma das primeiras documentações científicas sobre o papel que as mulheres desempenhavam na criação de manuscritos iluminados na Europa medieval.

Durante este período, a alfabetização e textos escritos encontravam-se sobretudo no domínio das instituições religiosas. Os manuscritos iluminados (livros escritos à mão e decorados a ouro, prata e pigmentos de cores vivas) nasciam em mosteiros para ser usados pelos membros de instituições religiosas e pela nobreza. A Alemanha terá sido um local rico na produção destes livros durante este período, mas “tem sido particularmente difícil” identificar as contribuições das mulheres, refere o comunicado, que considera que esta é uma “descoberta sem precedentes”.

No entanto, e apesar de uma participação muito rara e pouco documentada, sabe-se hoje que as mulheres eram “produtoras de livros” nesta época. “Antes do século XV, porém, os escribas raramente assinavam seus trabalhos, levantando a dúvidas quanto à sua identidade.

Mesmo entre livros existentes em bibliotecas de mosteiros femininos, menos de 15% têm nomes ou títulos femininos, e antes do século XII, menos de 1% dos livros podem ser atribuídos a mulheres”, lê-se no artigo publicado na Science Advances, onde se acrescenta que esta actividade terá começado a ser desenvolvida por mulheres tão cedo quanto o século VIII. Mas sem provas disso mesmo, há muito tempo que se presume que os monges, em vez das freiras, eram os principais produtores de livros durante toda a Idade Média.

Algumas investigações recentes já tinham desafiado este pressuposto e desmascararam que mulheres religiosas não só seriam produtoras de livros mas também consumidoras vorazes de literatura. “Embora os exemplos sobreviventes desses primeiros trabalhos sejam raros e relativamente modestos, há um crescente corpo de provas que mostram, que nos mosteiros as mulheres estavam a produzir activamente livros da mais alta qualidade no século XII”, reconhecem os autores do estudo.

Há, por exemplo, o caso documentado de uma mulher escriba do século XII que estava no mosteiro de Wessobrunn, na Baviera, e que terá produzido mais de 40 livros, incluindo um evangelho iluminado. “Entre os séculos XIII e XVI, durante os quais as provas documentais e a manutenção de registos na Alemanha são mais completas, foram identificados mais de 4000 livros atribuídos a mais de 400 escribas mulheres.”

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Alicerces de uma igreja associada a um mosteiro em Dalheim, Lichtenau, na Alemanha Christina Warinner

Os investigadores argumentam assim que a identificação daquelas que terão sido as primeiras mulheres religiosas a participar na produção de livros “é desafiadora”, tendo em conta o reduzido número de livros sobreviventes, a perda ou inexistência de documentação dos mosteiros e o costume dos escribas de deixar seus trabalhos sem assinatura. “Como resultado, escribas femininas individuais permanecem pouco visíveis no registo histórico, e é provável que a maioria de seus trabalhos de escriba ainda não tenha sido reconhecida”, concluem.

Várias hipóteses

O estudo vem agora acrescentar uma mulher religiosa à história dos primeiros escribas. E a acção passa-se num pequeno mosteiro na zona rural do centro da Alemanha, ainda que não se saiba muito sobre este local religioso. Não é conhecida, por exemplo, a data da fundação do mosteiro, sendo que os primeiros registos escritos datam de 1244. “Acredita-se que o mosteiro tenha abrigado aproximadamente 14 mulheres religiosas desde sua fundação até a sua destruição pelo fogo, após uma série de batalhas do século XIV”, adiantam os investigadores

No cemitério deste mosteiro estava esta mulher com numerosas manchas de um pigmento azul nos dentes. “Tinha entre 45 e 60 anos e morreu por volta de 1000-1200. Não tinha patologias específicas do esqueleto nem manifestações de trauma ou infecção. O único aspecto notável dos seus restos eram as partículas azuis encontradas nos dentes”, refere o comunicado. “Foi uma surpresa completa – quando o cálculo se dissolveu, lançou centenas de minúsculas partículas azuis”, recorda Anita Radini.

Além da hipótese de esta mulher ser escriba ou pintora de livros envolvida na produção de manuscritos iluminados, os cientistas admitem que foram ponderados outros cenários menos prováveis. A mulher de meia-idade enterrada num cemitério ligado à comunidade religiosa podia, por exemplo, dedicar-se a uma “devoção dos livros iluminados produzidos por outros” beijando de forma repetida as gravuras. Um ritual que, apesar de parecer estranho, não seria invulgar na época.

Outra possibilidade coloca esta mulher como “empregada” na preparação de materiais para outros escribas. Por fim, os cientistas também terão colocado o cenário de esta mulher ter “consumido lápis-lazúli num contexto de medicina”, já que alguns julgavam que este mineral possuía poderes mágicos. A hipótese mais forte e que sobrou após a cuidadosa análise dos vestígios foi a história que contámos no início: estávamos perante uma mulher que decorava manuscritos e que, enquanto trabalhava, lambia a ponta do pincel ocasionalmente.

Depois, juntam-se mais uns pozinhos de imaginação. “Ela estaria ligada a uma vasta rede comercial global que se estendia das minas do Afeganistão à sua comunidade na Alemanha medieval através das metrópoles comerciais do Egipto islâmico e da Constantinopla bizantina. A economia crescente da Europa do século XI incitou a demanda pelo precioso e requintado pigmento ao longo de milhares de milhas através de caravanas mercantes e navios para servir a ambição criativa desta artista mulher”, explica o historiador Michael McCormick da Universidade de Harvard (EUA), que também é um dos autores do artigo.

Christina Warinner, do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana, imprime mais um pouco de dramatismo: “Aqui temos provas de uma mulher, não apenas pintando, mas pintando com um pigmento muito raro e caro, e num lugar muito deslocado.” Por fim, a investigadora deixa ainda espaço para a imaginação dos outros: “A história dessa mulher poderia ter permanecido escondida para sempre. Isso faz-me pensar em quantos outros artistas poderíamos encontrar em cemitérios medievais – se os procurássemos.”