Marçal Grilo: abolição de propinas não defende os mais pobres, apoia os mais ricos

Para o antigo ministro do PS, é um erro acabar com as propinas. Couto dos Santos e Pedro Lynce falam em eleitoralismo.

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Marçal Grilo desenhou o actual modelo de financiamento do Ensino Superior Enric Vives-Rubio

O antigo ministro da Educação do Governo socialista que desenhou o actual modelo de financiamento do Ensino Superior, Eduardo Marçal Grilo, não podia ser mais directo ao comentar ao PÚBLICO uma das questões que está a marcar a actualidade: a ideia de abolir as propinas. “Aqueles que andam a dizer que isto é para apoiar os mais pobres estão enganados. Isto é para apoiar os mais ricos.”

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O antigo ministro da Educação do Governo socialista que desenhou o actual modelo de financiamento do Ensino Superior, Eduardo Marçal Grilo, não podia ser mais directo ao comentar ao PÚBLICO uma das questões que está a marcar a actualidade: a ideia de abolir as propinas. “Aqueles que andam a dizer que isto é para apoiar os mais pobres estão enganados. Isto é para apoiar os mais ricos.”

Couto dos Santos, que foi ministro do Governo de Cavaco Silva em tempos de forte contestação no sector, diz que é uma ideia “eleitoralista”. “Vejo isto como um erro político e social. Aquilo que esteve na origem da criação das propinas foi a iniquidade que havia no acesso ao Ensino Superior”, diz, explicando que “quem pudesse pagar pagava, quem não pudesse era apoiado pelo Estado através da Acção Social”. E pergunta: “Onde está o estudo de sustentabilidade de um sistema destes? Onde vai o Estado buscar o dinheiro? As universidades têm problemas até para pagar salários e estamos a cortar no financiamento? É um princípio de justiça social os que podem pagarem mais para os que não podem poderem frequentar o ensino superior.”

Pedro Lynce, que foi secretário de Estado nessa altura, concorda: “Se quiserem abrir uma discussão, abram, mas não é a meia dúzia de meses das eleições. A Constituição diz que o ensino deve ser tendencialmente gratuito. Ora, se o país daqui a uns tempos tiver condições para isso, não vejo inconveniente, embora haja questões a ponderar. Será justo ninguém pagar nada? Quando o Ensino Superior se queixa de falta de verbas, o Estado tem condições para compensar? Parece-me um pouco eleitoralista. Não estava à espera que este ministro o fizesse.”

A abolição, defendida numa perspectiva de médio prazo pelo ministro da Ciência e Ensino Superior, Manuel Heitor, foi corroborada pelo Presidente da República e merece também a concordância da esquerda. Marçal Grilo tem, no entanto, outra opinião e considera que, “mesmo que haja dinheiro, as propinas devem existir”, mas com “critérios” que garantam que ninguém fica de fora do Ensino Superior por motivos financeiros. O ex-governante - que falou ao PÚBLICO nesta quarta-feira antes de Marcelo Rebelo de Sousa ter esclarecido por que motivos reviu a posição nesta matéria - explica o pensamento ponto por ponto.

Os pontos de Marçal Grilo

Primeiro ponto: “O problema que está em causa não é a questão das propinas. É a questão do financiamento do Ensino Superior. O que é preciso é tratar do financiamento do Ensino Superior. Como é que se faz o financiamento do Ensino Superior, em todas as suas vertentes? Na vertente ensino, na vertente investigação científica, e na vertente de Acção Social Escolar, ou seja, de apoio aos estudantes”, começa por enunciar.

Segundo ponto: “No financiamento, o Estado tem um papel muito importante. Porque o Ensino Superior é muito importante para o país. E, portanto, o Estado tem obrigação de, com o nosso dinheiro, com o dinheiro dos contribuintes, com o dinheiro dos nossos impostos, financiar fortemente o Ensino Superior”, prossegue.

Terceiro ponto: “Devem ou não as famílias dos estudantes participar no custo dos seus estudos? Devem. E devem por variadíssimas razões. Porque o Ensino Superior constitui uma grande valorização pessoal para quem o frequenta, para quem o termina, e para quem, depois, tem oportunidade de, no país ou fora do país, utilizar os conhecimentos e capacidade que adquirir. E, portanto, deve pagar.”

Quarto ponto: “Ninguém deve ficar fora do Ensino Superior por razões financeiras e económicas. Temos todos a obrigação de apoiar aqueles que não têm condições para pagar. Não é só as propinas. É pagar os estudos, porque o pagamento dos estudos não são só as propinas. São os transportes, o alojamento, a alimentação, os livros, o computador, etc. Aí o Estado tem um papel: através da Acção Social Escolar deve compensar todos aqueles que não têm condições”, explica o ex-ministro.

Quinto ponto: “Se abolirmos as propinas, o que é que acontece? Acontece uma coisa muito simples: os mais pobres ficam a financiar os mais ricos.” Como? Marçal Grilo lembra que “todos pagam impostos, directos ou indirectos”, que “os mais pobres”, mesmo que “eventualmente” não paguem IRS, “pagam os impostos indirectos, o IVA, o imposto sobre a gasolina, os transportes, a electricidade, a água”, entre outros. Ora, continua, “o dinheiro que o Estado arrecada destas pessoas também vai para os estudantes que podem pagar. E, portanto, não haver propinas significa os mais pobres a pagarem os mais ricos.”

Reforçar Acção Social

Sexto ponto: “A Acção Social Escolar tem de ser muito reforçada”, defende Marçal Grilo, referindo-se a um reforço “em todas” as “vertentes”: “na construção de residências, no apoio ao custo das refeições, naquilo que são os gastos que as pessoas têm”. É preciso dar “ainda mais apoios àqueles que mais precisam e tentar alargar o campo da Acção Social Escolar”, frisa. “O que quero dizer com isto? Quando houver jovens, rapazes e raparigas, que estejam numa faixa que não é coberta actualmente pelos critérios da Acção Social Escolar, esses critérios devem ser alargados para cobrir mais”, afirma, defendendo que esse alargamento deve garantir também que ninguém fica de fora por não ter dinheiro para as propinas.

Sétimo ponto: “A minha interpretação do que o senhor Presidente da República quis dizer é a seguinte: o senhor Presidente quis dizer exactamente aquilo que eu acabei de dizer. Ninguém deve ficar de fora por falta de meios financeiros e económicos. E, portanto, tem de se encontrar uma fórmula”, nota, admitindo, no entanto, que se trata de um “problema complexo”.

Oitavo ponto: “A abolição das propinas só poderá ser compreensível se, a nível europeu, for entendido que o primeiro ciclo do Ensino Superior é uma espécie de escolaridade obrigatória”, diz, referindo-se à “primeira parte do Ensino Superior”, “uns três ou quatro anos”, e não à pós-graduação. “Então, aí, e com fundos europeus, isso poderá ser feito a nível europeu. Porque será uma estratégia global de qualificação da população”, diz Marçal Grilo.

A conclusão do antigo governante? “Muitas vezes diz-se que não se pode abolir porque não há dinheiro. Não é porque não há dinheiro. Mesmo que haja dinheiro, as propinas devem existir. Mas com estes critérios que acabei de dizer.”

Depois desta exposição, Marçal Grilo reitera que o Presidente da República “está preocupado, com certeza, com o financiamento do Ensino Superior” e congratula-se por se estar a discutir o tema: “O Ensino Superior precisa de vir para a frente das notícias, porque é um sector de uma enorme importância para o futuro do país. E no Ensino Superior englobo a investigação científica e o conhecimento.” Ressalvando que o tema do financiamento é “uma grande prioridade para o Estado”, insiste que “as propinas acabam por ser um factor de igualização" e não o contrário: "É um factor que aumenta a igualdade entre as pessoas e diminui aquilo que são as dificuldades.”

Já depois destas declarações de Marçal Grilo, Marcelo Rebelo de Sousa publicou uma nota no site da Presidência da República, na qual explica por que motivos, e em que circunstâncias, passou a concordar com a abolição das propinas.