Democracia racial e outra "estórias" que o Brasil gosta de contar a si mesmo
Em rigor, o Brasil não só não superou a questão racial, como jamais superou a escravatura, simplesmente transformando a condição de escravo na condição da segregação racial.
O caso brasileiro, com a eleição de Bolsonaro, de que pretendo falar, comporta uma dimensão de transformação ideológica e social tremenda, nem sempre devidamente alcançado pela imprensa e comentadores políticos. Se na Europa e Estados Unidos, com a crise económica de 2008 e as crises sociais que ali foram fervilhadas, quando o "outro", representado, sobretudo, pelos imigrantes, mas também pelas minorias que se concebem como privilegiadas, os chamados “descamisados da globalização” começaram a verbalizar o seu mal-estar e, num contexto de crise de representação por parte dos partidos políticos mainstream, aderem a movimentos extremistas clássicos, agora reformados pelas agendas do novo milénio, no contexto brasileiro o cenário é ainda mais complexo do que isso, porque coloca em questão a própria construção da brasilidade, expondo as fragilidades de uma nação imaginada sob falácias ideológicas.
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O caso brasileiro, com a eleição de Bolsonaro, de que pretendo falar, comporta uma dimensão de transformação ideológica e social tremenda, nem sempre devidamente alcançado pela imprensa e comentadores políticos. Se na Europa e Estados Unidos, com a crise económica de 2008 e as crises sociais que ali foram fervilhadas, quando o "outro", representado, sobretudo, pelos imigrantes, mas também pelas minorias que se concebem como privilegiadas, os chamados “descamisados da globalização” começaram a verbalizar o seu mal-estar e, num contexto de crise de representação por parte dos partidos políticos mainstream, aderem a movimentos extremistas clássicos, agora reformados pelas agendas do novo milénio, no contexto brasileiro o cenário é ainda mais complexo do que isso, porque coloca em questão a própria construção da brasilidade, expondo as fragilidades de uma nação imaginada sob falácias ideológicas.
Ora, uma dessas primeiras e mais decisivas falácias, ou de outra forma, uma das estórias que o Brasil gosta de contar a si mesmo, é o da democracia racial. Enquanto base ideológica, o mito da democracia racial propagou-se entre todas as camadas sociais brasileiras permitindo fabricar perceções sociais em que a raça não operava na mobilidade e composição sociais, virando o olhar da descriminação para categorias sociais diferentes, como o "pobre", a "mulher", o "nordestino", o "veado" (homossexual).
Quando devidamente analisada, a questão racial no Brasil revela que para além dessa narrativa que serviu interesses geopolíticos, nada mais sobra que os traços grossos da mitologia. Em rigor, o Brasil não só não superou a questão racial, como jamais superou a escravatura, simplesmente transformando a condição de escravo na condição da segregação racial. Com a abolição da escravatura e com o projeto de desenvolvimentismo e embranquecimento social (interligados), ao negro, outrora escravo, reservou-se a condição de marginalidade social, empurrado para fora do traçado urbano, preservando as disposições ideológicas e legais nas quais negro, poluição étnica, ética e religiosa andavam entrelaçadas. Ao produzir a marginalização do negro, o Brasil criou as condições segregacionais adequadas para imaginar a democracia racial.
A reação das franjas privilegiadas e a revolução evangélica
Com efeito, entre a queda do mito da democracia racial – graças às ciências sociais e aos movimentos negros – e as políticas de ação afirmativa empreendidas pelos governos do PT, ocorre a reação dos setores historicamente favorecidos, que viram os seus privilégios raciais e de classe ameaçados. Manifestações contra negros nas universidades, contra as cotas raciais, contra os direitos das domésticas, entre outros, fizeram um périplo que abriu caminho para a ascensão de uma figura próxima à de Trump, sabendo que a classe média e alta brasileira tem uma representação social de si mesma de base norte-americana. Assim, graças a uma estratégia de coligação de forças conservadoras ligadas aos media, uma campanha bem montada de fake news via whatsapp, o apoio massivo das principais indústrias brasileiras, em particular os interesses do gado, aliadas a um discurso populista capaz de cativar largas franjas sociais, a eleição de Jair Bolsonaro tornou-se numa realidade, passando, à imagem da sua grande referência, Donald Trump, do candidato-comédia ao presidente eleito. Quando excluído o impacto das fake news, a realidade revelada expressa a dimensão moral do Brasil: um país profundamente marcado pela homofobia, pela misoginia, pela demarcação racial e de classe. Este cenário é agudizado pela circunstância histórico-ideológico-moral que o país vive, com a revolução evangélica em curso.
O crescimento e a conquista do poder por parte das igrejas evangélicas são um dado sociológico e político já devidamente analisado pela academia brasileira. O poder político da designada bancada evangélica é, apenas, parte da realidade brasileira, onde o controlo dos media permite uma onda de fanatismo sem par no Ocidente, que se tem traduzido numa verdadeira guerra santa contra as religiões afro-brasileiras, concebidas como espaços de culto demoníaco e de albergue dos “caídos em desgraça”, como os homossexuais, travestis, e outros membros da comunidade LGBTI. Ora tais igrejas, com taxas de crescimento incomparáveis, revelam-se espaços especiais de doutrinação político-ideológica, tendo feito, na sua larga maioria, intensa, ainda que ilegal, campanha pró-Bolsonaro, ungido como Salvador da Pátria e o Messias que conduzirá o país à restauração da ordem, da moral e dos bons costumes. Esse programa ideológico em curso é evidente na composição ministerial. Olhando, por exemplo, para a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, vemos plasmado todo o programa revolucionário evangélico em curso. Nas suas palavras: “É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”, ou “o Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”. Estas afirmações, proferidas no dia da tomada de posse, continuam uma narrativa particularmente preocupante perante a pasta que assume. Damares Alves que, um mês antes, afirmava que o “modelo ideal de sociedade é com mulheres apenas em casa”.
Em suma, o programa de governo de Bolsonaro configura uma total inversão da marcha civilizacional dos últimos governos, procurando implementar uma agenda que concentra a ideologia da ditadura militar, do ultraconservadorismo económico, do alinhamento das relações internacionais quase exclusivamente com os Estados Unidos (de Trump, concretamente), e da moral cristã-evangélica ultraconservadora, messiânica, de combate ao demónio representado noutras religiões e na sociedade da diversidade. De forma abreviada, a agenda do governo que agora começa funções é a da coabitação entre o plano ideológico da ditadura militar e o plano da ditadura moral. A eleição de Bolsonaro traduz uma disposição social alargada que não se revia no caminho encetado pelo PT. As classes historicamente favorecidas, caraterizadas por um manual ético e moral extremamente conservador, quando beliscadas no seu status quo, i.e., quando viram a “senzala” avançar em direção à “casa grande”, reclamando a partilha de privilégios e a conquista de direitos que lhes foram historicamente negados, reagiram, alinhando-se não ao centro-direita, mas à extrema-direita brasileira, a única capaz de reverter em tempo recorde todos os “privilégios” dados aos indesejáveis. A esta minoria juntou-se a demograficamente expressiva “nação” evangélica. Assim, depois de ter contado a si mesmo a estória da democracia racial, o Brasil contou a estória da democratização social. Tudo para não ter de contar a história do racismo, da exclusão social e da propensão autoritária.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico