O Cais que caiu que nem ginjas
Apelidar de “regeneração” e “qualificação” a algo que se resume a, basicamente, construir em todo o lado onde houver espaço vago neste cais que é hoje de memórias e memoriais à era industrial, é teatro do absurdo.
Onde não estamos é que estamos bem. Já não estamos no passado, e então ele parece-nos belíssimo. (O Ginjal, Anton Tchékov)
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Onde não estamos é que estamos bem. Já não estamos no passado, e então ele parece-nos belíssimo. (O Ginjal, Anton Tchékov)
O excelso dramaturgo russo autor de O Ginjal (também conhecido por Jardim das Cerejeiras) que me perdoe por o invocar em vão (talvez), assim, sem mais, mas há um drama em fase de ensaio final para o Cais do Ginjal, aqui defronte a Lisboa, ainda que o encenem como uma história de amor redentor, perdão, como “elemento regenerador e qualificador do Património Industrial”.
A peça, intitulada Plano de Pormenor do Cais do Ginjal, é da co-autoria moral e material da Câmara Municipal de Almada, do promotor imobiliário madeirense AFA e do atelier de Samuel Torres de Carvalho, com os primeiros escritos a remontarem há mais de 10 anos, e está quase a estrear em palco, sem ponto, e, que se saiba, com cenários contemporâneos, mas nem por isso minimalistas.
Não que se esperasse que dessem agora em recriar os tempos imemoriais da acostagem dos navios contendores em plena crise de 1383-85, ou as marés cheias, ou vazias, do pós-Terramoto e do milagre que salvou Cacilhas das águas então revoltosas. Mas apelidar de “regeneração” e “qualificação” a algo que se resume a, basicamente, construir em todo o lado onde houver espaço vago neste cais que é hoje de memórias e memoriais à era industrial, é teatro do absurdo, quiçá stand-up comedy.
Sem mais comédias e em pouco palavreado, para quem não esteja a ver muito bem com o que se vai deparar se não houver correcções ao texto e aos números defendidos neste plano, e decidir avançar Rua do Ginjal adentro chegado que esteja ao apeadeiro fluvial, é o seguinte:
A rua estreita e empedrada, a espaços, do cais propriamente dito, onde até há 50-60 anos havia verdadeiras multidões a circular por entre guinchos e postos de amarração, e outras tantas caldeiradas; vai ter o dobro da largura e o paredão será reforçado substancialmente de modo a permitir a circulação automóvel em dois sentidos, e a assegurar a boa circulação dos estimados “1850 veículos/dia”. Pasme-se.
Portanto, no que toca ao primado do peão e das mobilidades suaves sobre o popó, não se vislumbra século XXI neste plano dito de pormenor, antes pelo contrário, até porque ainda se quer construir um silo monumental ao cimo da arriba, com sistema elevatório, de modo a também por aí se escoarem devidamente as estimativas automóveis.
Por outro lado, pensar-se-ia que o essencial do plano fosse a reabilitação dos pavilhões, armazéns e ruínas (muitas, imensas) do longo do cais de cerca de 1km de extensão, quiçá por meio de uma replicação do modelo de sucesso (até ver) da outra margem, um mix entre a Lx Factory e as Docas de Alcântara.
Contudo o que se constata é que a habitação é o mote de toda a operação urbanística para os mais de 80 mil m2 de implantação da área a intervir, e habitação em 2.ª linha, o que implica, obviamente, construção em altura para que todos os novos habitantes possam usufruir de vistas para o rio e para a outra margem. Vai daí, toca a ampliar tudo o que lá existe, esteja de pé ou em ruína.
Por isso, do que se trata de facto é de operação imobiliária em grande escala. E de demolições em barda. Novos arruamentos e muitos prédios novos.
É verdade que também estão previstas áreas para as indústrias criativas, outras para artes e outras ainda para memoriais aos tempos de antanho daquele cais, de fábricas, indústrias, armazéns, barcos, bacalhoeiros ou não, e trabalhadores, muitos trabalhadores. Mas sabe a pouco, muito pouco, e a modas, uma vez que o fulcral do empreendimento é adaptar-se o que existe e construir de raiz para habitação com vista.
Duvida-se, inclusive, que a silhueta e as fachadas dos edifícios de 1.ª linha, em cima do cais, se mantenham como estão, quanto mais as coberturas e acabamentos.
O que não se entende é que a mesma câmara municipal tenha reabilitado sem mácula outra área de Cacilhas, ali bem perto, escassas dezenas de metros por detrás do cais.
O que nunca se entendeu é como o Cais do Ginjal não está classificado de Interesse Público ou Municipal, porque em vez deste que se diz plano de pormenor e não passa de uma urbanização, teríamos, isso sim, um Plano de Pormenor e Salvaguarda, que é disso que se trata: salvaguardar o cais, recuperando-o e re-utilizando-o, mas sem lhe matar a alma ou travestir o corpo. A gula imobiliária não seria a mesma e o cais já não cairia que nem ginjas? Talvez não.
Por falar em sabores e digestões, haverá, por certo, novos e muitos sabores no futuro cais, e por isso mesmo, bastante concorrência aos agora celebérrimos e incontornáveis “Atira-te ao Rio” e “Ponto Final”, pelo que nunca é demais prevenirem-se estes dois na eventualidade de lhes poder vir a acontecer o que sucedeu ao outrora célebre “Floresta do Ginjal” e às suas festas de casamento, que se finaram, ambos.
No horizonte do plano há ainda lugar a mais uma cena, a da “praia do Ginjal”, sobre a qual há-de cair o pano.
Do lado de lá da península, na antiga Lisnave, está também já em ensaios finais a grande urbanização da Margueira, mas não vê do lado de cá.