Trabalho forçado nas colónias portuguesas "bastante disseminado" até aos anos 60

Trabalhadores presos com “grilhetas” ao pescoço, castigos corporais, violações, “iniquidades e abusos”. José Pedro Monteiro publicou em livro resultado de uma investigação sobre o período 1944-1962.

Foto
Postal com comerciantes portugueses no Dondo, Angola, no início do século XX. EDUARDO OSÓRIO, LUANDA/COL. PRIVADA DE FILIPA VICENTE

Os registos históricos não permitem averiguar a escala, mas o trabalho forçado nas colónias portuguesas era uma realidade "bastante disseminada", pelo menos até à década de 1960, segundo o historiador José Pedro Monteiro, num novo livro sobre o tema.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Os registos históricos não permitem averiguar a escala, mas o trabalho forçado nas colónias portuguesas era uma realidade "bastante disseminada", pelo menos até à década de 1960, segundo o historiador José Pedro Monteiro, num novo livro sobre o tema.

Depois de concluída a tese de doutoramento (A internacionalização das políticas laborais 'indígenas' no império colonial português (1944-1962)), José Pedro Monteiro apresenta, na quinta-feira, em Lisboa, o livro daí resultante: Portugal e a questão do trabalho forçado: Um império sob escrutínio (Edições 70).

Questionado sobre a dimensão do trabalho forçado nas colónias portuguesas durante o período estudado, José Pedro Monteiro respondeu que o material disponível não permite chegar a números precisos: "É muito difícil conseguir-se ter uma ideia global à escala do império. Primeiro, há realidades geográficas muito distintas. Em Cabo Verde, Timor e, eventualmente, na Guiné a questão do trabalho forçado não se coloca da mesma maneira que se coloca em São Tomé, Angola e Moçambique.”

Por isso, "desconfiaria muito de alguém que desse um número redondo para os trabalhadores forçados", salientou.

No livro, com base em documentação da viragem da década de 1950, José Pedro Monteiro constata que "o trabalho obrigatório não se limitava a fins públicos (como previsto no Código de Trabalho dos Indígenas); para fins públicos, era usado como regra e não como dando resposta às excepções previstas no CTI; o recrutamento era feito generalizadamente com intervenção das autoridades administrativas (tanto para fins privados como públicos); os compromissos de repatriamento não eram respeitados; as taxas de mortalidade eram extraordinariamente altas; e, por fim, os castigos corporais estavam longe de estar completamente erradicados, como a lei postulava".

Por exemplo, em 1945, um relatório indicava a existência de trabalhadores presos com "grilhetas" ao pescoço em São Tomé, o que levava o inspector superior de Serviços Judiciais a argumentar contra tal imposição — "não por uma razão humanitária, [mas] antes diplomática", depois de turistas estrangeiros terem fotografado pessoas a serem chicoteadas, o que podia levar a censura internacional.

“Iniquidades e abusos”

Em 1951, um encarregado de serviços da Inspecção Superior dos Negócios Indígenas desfiava "um rol de iniquidades e abusos":

  • elevada taxa de mortalidade no transporte de pessoas;
  • "acidentes de trabalho que eram dados como ocorridos nas horas de descanso, como forma de desresponsabilização";
  • "inválidos que eram obrigados a trabalhar em São Tomé", então classificados como "verdadeiros farrapos humanos";
  • violações sistemáticas de mulheres de trabalhadores;
  • "grávidas e mulheres com filhos eram 'monstruosamente espancadas com mais de 50 palmatoadas' por terem abandonado o trabalho".

Sobre a escala daquela realidade, José Pedro Monteiro esclareceu: "Muitas das vezes, o que para um é trabalho forçado para outro não é. O facto de a própria legislação ser ambígua e dizer que se deve encorajar o indígena a trabalhar, é muito difícil conseguir ter um registo de quais os números exactos. Há situações muito cinzentas. O que posso dizer é que se manteve como realidade bastante disseminada – com diferenças – até 1961/62. Mais não posso dizer porque a minha tese para em 1962".

O investigador de pós-doutoramento do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra salientou que "há diferenças entre as colónias", até mesmo dentro das distintas colónias.

“Todo aquele que tem lidado com pretos”…

Apesar de o "reformismo português existir", este tinha limites que eram, "em grande medida, resultado de uma equação utilitarista": "Aqueles funcionários que se indignavam com o trabalho forçado e exigiam o cumprimento integral do CTI eram (...) provavelmente aqueles mais comprometidos com uma mudança".

Por outro lado, "nestas mesmas instâncias de inspecção encontram-se relatos bem mais complacentes com práticas de trabalho coercivo".

É disso exemplo o escrito de um determinado funcionário: "Todo aquele que tem lidado com pretos sabe muito bem que o indígena nunca vai trabalhar para fora da sua terra, por um período superior a cinco ou seis meses, contratado de sua livre vontade. Pode ausentar-se por um período superior como voluntário. Como contratado só obrigado".

A apresentação de "Portugal e a questão do trabalho forçado" está marcada para quinta-feira, às 18h, na Livraria Almedina Rato, em Lisboa, com a presença de António Araújo e de Francisco Louçã.