Pauladas e pontapés na liberdade de expressão
Queremos um jornalismo que há décadas dá palco a Mário Machado e até nos conta detalhes da sua vida romântica no registo “no peito de um skinhead também bate um coração” mas não esclarece se foi feita justiça às suas vítimas?
“Quero balizar a liberdade de expressão” seria uma afirmação polémica. Roubar maçãs é um crime. Descrever Mário Machado (MM) como um “autor de declarações polémicas” (Goucha) ou alguém "culpado de crimes” (José Pacheco Pereira, JPP) é recorrer a eufemismos ignorantes ou provocatórios.
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“Quero balizar a liberdade de expressão” seria uma afirmação polémica. Roubar maçãs é um crime. Descrever Mário Machado (MM) como um “autor de declarações polémicas” (Goucha) ou alguém "culpado de crimes” (José Pacheco Pereira, JPP) é recorrer a eufemismos ignorantes ou provocatórios.
Independentemente do que possamos pensar sobre a liberdade de expressão, qualquer texto que mencione o mais famoso neonazi da pátria deve incluir uma referência a Alcindo Monteiro, Manuel Domingos Silva, Contreiras Ferreira, Alberto Adriano, Fausto Soares, João Soares e Matias de Almeida, entre outros, que a 10 de Junho de 1995 foram agredidos à paulada e aos pontapés no corpo e na cabeça por skinheads.
Apesar de se ter apurado que MM não atacou directamente Alcindo Monteiro (que viria a morrer), a sua responsabilidade moral foi evidente, já que naquela noite ele seria um dos primeiros a agredir com “um pau semelhante a um taco de baseball” outras vítimas. Esta carreira na área do ódio racial veio depois a desabrochar de modo multifacetado, exuberante e continuado, como qualquer pessoa poderá verificar fechando a televisão e recorrendo à internet... se se der ao trabalho.
No curto testemunho que a TVI recolheu, MM prosseguiu a sua longa campanha de desinformação e vitimização sem que tivesse sido denunciado por contraditório na hora ou algum fact checking subsequente, o que deveria envergonhar qualquer jornalista que se preze.
A TVI bem pode armar-se a posteriori em arauto da liberdade de expressão, mas esteve sobretudo a espalhar lixo informativo – e friso que não me refiro às opiniões de MM, mas às suas falsidades. Em Junho de 2018, na crónica ”Contra o esquecimento, os factos”, Rui Tavares já tinha desmontado a estratégia de MM, mas tendo em conta a poeira levantada pela TVI, bem como o talento de MM para a mistificação, é pertinente fazê-lo de novo, aqui e em toda a parte.
Ao contrário do que disse MM ao sugestionável auditório dos programas de TV da manhã, usando convenientemente a voz passiva e deixando a entender que teria estado envolvido numa luta entre gangs rivais ou algo do género, na noite de 10 de Junho de 1995 não “aconteceu um confronto entre nacionalistas e africanos”, o que houve foi uma perseguição violentíssima de skinheads, primeiro a um grupo de cidadãos negros em fuga e em inferioridade numérica e, depois, a qualquer cidadão negro isolado ou integrando um pequeno número que com eles se cruzasse.
Nessa noite, muitos acabaram no hospital e nenhum era skinhead, o que não bate certo com a tese da rixa entre grupos rivais – os detalhes horripilantes dessa noite estão neste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (salvo erro, MM é o “arguido E”).
Da leitura do acórdão também se conclui que, em primeira instância, MM não foi vítima do erro judicial que alega, nem que foi depois “absolvido” pelos juízes do Supremo, como diz perante o seu interlocutor crédulo. Cito do acórdão: “nega-se provimento aos recursos dos arguidos”. O Supremo apenas reduziu a pena inicial de MM de quatro anos e três meses para dois anos e seis meses por cinco crimes de ofensas corporais com dolo de perigo.
Ao contrário do que insinua MM, tentando fazer-se passar por vítima de um sistema de justiça inoperante, ele nunca foi erradamente condenado pela morte de Alcindo Monteiro, nem sequer em primeira instância. Aliás, neste caso a Justiça parece ter funcionado de forma expedita e competente; e se alguma impressão fica ao ler-se o relato daquela noite, é que a pena de MM foi branda.
Na peça, MM faz-se depois passar pelo “primeiro português em Portugal, depois do 25 de Abril, a ter sido condenado por um texto escrito na internet”, um texto que “não era ofensivo”, como se tivesse ido para a prisão por um crime de opinião, esquecendo-se de referir que nesse texto ameaçava e coagia uma procuradora.
Por fim, MM, que louva a honestidade de Salazar, diz ainda que “não tem qualquer arrependimento”, o que deixa o leitor na dúvida: será que mudou de ideias? É que uns anos antes afirmou: “Se soubesse o que sei hoje tinha feito tudo de forma diferente. Deixei-me levar pelo espírito de grupo.”
Perante isto, pensaríamos que seria impossível encontrar alguém que desse valor à sua palavra e perdesse tempo a discutir as suas opiniões políticas, mas JPP deu-lhes eco e chegou a conclusões surpreendentes. A primeira conclusão é que uma simples pergunta sobre a homossexualidade de Goucha, que recebe de MM uma resposta “surpreendentemente boa”, “redime” a entrevista. Precisamos de recuar um pouco para perceber tamanho absurdo.
É trivial que são as opiniões ofensivas e repulsivas que realmente testam a liberdade de expressão. Este mantra interpretativo tende a ser proclamado com aquela irritante postura de enfado e sobranceria de quem se julga o único a lembrar o que, na verdade, qualquer pessoa com alguma leitura repete quando há uma polémica sobre liberdade de expressão.
Alguém sempre lembra uma citação erroneamente atribuída a Voltaire: “não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres.” Os mais sofisticados rematam depois com uma tirada de Oscar Wilde em jeito de “punchline”: “posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de fazeres figura de parvo.” Palmas, muitas palmas.
Para não perdermos o pé em algum abismo da alma, é melhor não ensaiarmos uma leitura literal que nos levaria a avaliar se estamos realmente dispostos a defender este direito “até à morte” (uma pequeníssima minoria talvez esteja), mas no caso concreto de MM precisamos de uma frase grandiloquente feita por medida. Porquê? Porque já se viu que às opiniões polémicas e cadastro de crimes de ódio, MM junta um currículo como musculado opositor à liberdade dos outros, incluindo a de expressão, tendo ameaçado não só a procuradora que referi, como algumas figuras públicas que o criticaram e pelo menos a uma cidadã que contribuiu para que fosse preso.
Precisaríamos então de dizer algo como isto: “posso não concordar contigo, mas defenderei até à morte o teu direito de me ameaçares e ameaçares aqueles que me são queridos.” Tenho dificuldade em imaginar que hipócrita ou louco proferiria tal afirmação. Felizmente, apesar de muito do que já se escreveu sobre liberdade de expressão, este caso apenas expõe a impreparação, a ignorância e a esperteza saloia de figuras miúdas e graúdas do “talk-show” televisivo quando resolvem brincar ao jornalismo.
Eis o paradoxo óbvio: sem se lhe conhecer qualquer contributo válido para a sociedade, sem ter qualquer dimensão representativa relevante, sem um pensamento particularmente original ou articulado, com um longo cadastro, nenhuma evidência sólida de remorsos ou vontade de reabilitação, e tendo já sido condenado por ameaças à liberdade de expressão dos outros, MM consegue ser uma das pessoas mais mediáticas deste país e fazer-se ao mesmo tempo passar por vítima da Justiça e mártir da liberdade de expressão.
Sim, é verdade que o seu exemplo nos deveria obrigar a rever as leis de criminalização da opinião, que têm um efeito claramente contraproducente nas sociedades abertas. Sim, é verdade que MM tem uma sede de protagonismo insaciável e, de certo modo, notável. Mas precisamos de um mínimo de salubridade.
O que esteve em causa nesta última polémica não foi o direito de MM a dizer o que mais lhe convém num determinado momento e circunstância, antes o revoltante namoro de já duas décadas que os media portugueses mantêm com ele, assumindo o papel de catalisadores e até agentes dos perigos que anunciam. Nada justifica o protagonismo que lhe dão, embora todos saibamos por que motivo o fazem: dar palco a uma figura “carismática”, violenta e racista como MM gera a polémica que faz subir as audiências e o tráfego na internet; MM e Salazar são hoje meros “clickbaits” usados para “incendiar as redes”.
De resto, esta sua última prestação mediática nem me pareceu mais desconcertante do que a última. Lembram-se? Há uns meses, tendo plena consciência de que estava a ser filmado para a televisão, MM ameaçou alguém com um gesto em que sugeria uma degolação ou decapitação. Como já nada me espanta, é possível que os canais que transmitiram essas imagens defendam hoje, para se protegerem da acusação de conivência com a violência ou um eventual crime futuro, que pode ter apenas sido um convite gestual para um arroz de cabidela.
Potenciado pelo pavor de parecer “politicamente correcto” e a vaidade que alimenta os “contrarians”, um dos efeitos da resiliência mediática de MM a emergir nos últimos dias foi o delírio hermenêutico. Na já citada crónica, com o desastrado título “A liberdade de expressão é uma coisa muito incómoda”, JPP desenvolve a ideia de que uma defesa caricatural e folclórica de Salazar (à MM) é menos perigosa do que os populismos que já pulsam por aí de forma muito mais sub-reptícia (na CM TV, se o percebi bem).
MM surge assim no papel daquele que, pelo seu extremismo e repulsa que gera, acaba por canalizar e frustrar ou imediatamente reprimir a pulsão populista. O polemista profissional João Miguel Tavares desenvolve essencialmente a mesma tese, ao concluir que a responsabilidade por uma eventual entrada dos saudosistas do Estado Novo no Parlamento “será muito mais de políticos como João Gomes Cravinho [cujo pecado capital parece ser um tweet em que criticou a TVI] do que de ex-presidiários como Mário Machado”.
Sabemos que as vitórias de Trump e Bolsonaro geraram inúmeros teóricos de sofá do populismo, fenómeno que mereceria outro texto, mas não nos dispersemos: já se esteve mais longe de atribuir a MM o mérito de acidentalmente ter prevenido a chegada da extrema-direita ao poder e não devemos descartar o cenário em que, num futuro próximo, elementos do SOS-Racismo serão presos por actos de vandalismo após a inauguração de uma estátua a MM.
Forço o absurdo para ilustrar as falácias de JPP e João Miguel Tavares. Seria muito mais sensato criticar o nosso sistema político e os nossos políticos e, passado algum tempo e talvez empregando uma caneta de outra cor, escrever sobre MM, mas sem forçar associações falaciosas (a falsa comparação e o non sequitur) que apenas contribuem para o branqueamento desta figura.
Fica a sensação de que, reféns de maniqueísmos que os impossibilitam de explanar um raciocínio assente na gradação e subtileza, e obrigados pelo vício de ofício a ancorar qualquer reflexão na actualidade, os cronistas falham o desafio quase inultrapassável que temos pela frente: como não transformar os vilões em heróis acidentais ou mártires da liberdade de expressão quando defendemos este valor incondicionalmente?
Sempre que se escreve ou lê sobre MM, fica um inevitável travo a contradição performativa; criou-se uma dinâmica viciosa em que é muito improvável que até o texto mais crítico e fundamentado não resulte contraproducente. Não será por isso difícil aceitar que julgar as acções de MM num quadro de direito à liberdade de expressão lhe será sempre favorável, sem ganho óbvio para a liberdade de expressão, isto é, para todos nós.
Surpreende que JPP e João Miguel Tavares não tivessem percebido esta evidência, perdendo em sensatez para as redes sociais que tantas vezes ridicularizam e desprezam. Estas, “incendiando-se”, são o herói acidental e improvável deste episódio, pois asseguraram uma oportuna e consequente censura social, a única realmente eficaz, já que com proibições legais sabemos que o tiro sai pela culatra e logo alguém nos açoita com o Voltaire apócrifo. A fórmula para não nos transformarmos nos cronistas úteis de MM é muito simples: evite-se contribuir gratuitamente para a sua vitimização como mártir da censura, sobretudo se o que esteve em causa, como nesta última polémica, foi apenas um exemplo de péssimo jornalismo.
A propósito de jornalismo, nas minhas leituras para este texto li que em 2016 a família de Alcindo Monteiro não tinha ainda recebido a indemnização de 18 mil contos (cerca de 90.000 €) que o tribunal estipulou lhe ser devida pelo homicídio que os skinheads cometeram em 1995. Não apurei se a indemnização foi entretanto entregue e creio ter chegado ao limite dos meus recursos enquanto “jornalista cidadão”. Algum dos colunistas sabe? A TVI, sabe? Interessa saber? Queremos um jornalismo que há décadas dá palco a MM e até nos conta detalhes da sua vida romântica no registo “no peito de um skinhead também bate um coração” mas não esclarece se foi feita justiça às suas vítimas?