O cerco à boa lei
Uma boa Lei de Bases da Saúde em Portugal, no sec. XXI, não é uma lei centrada nas despesas.
Uma boa lei é um produto, pouco importa quem foram os seus autores. Quando é bem elaborada nem se pensa na sua existência, uma vez que regula o sector de atividade a que se aplica de forma eficiente e quase invisível. Ainda não encontrei quem, profundamente engripado, se dirija a um centro de saúde e diga: “Estou aqui graças ao trabalho de António Arnaut e da sua equipa, bem hajam pelo que fizeram, quero consultar um médico...”
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Uma boa lei é um produto, pouco importa quem foram os seus autores. Quando é bem elaborada nem se pensa na sua existência, uma vez que regula o sector de atividade a que se aplica de forma eficiente e quase invisível. Ainda não encontrei quem, profundamente engripado, se dirija a um centro de saúde e diga: “Estou aqui graças ao trabalho de António Arnaut e da sua equipa, bem hajam pelo que fizeram, quero consultar um médico...”
Uma boa Lei de Bases da Saúde em Portugal, no séc. XXI, não é uma lei centrada nas despesas. Todos sabemos que a saúde tem preço e que direta ou indiretamente a pagamos, mas também reconhecemos que a média da despesa pública portuguesa per capita na matéria é inferior à da dos Países da OCDE. Podemos, pois, situando-nos no nosso universo civilizacional, gastar um pouco mais e melhor em cuidados de saúde. O problema não reside sobretudo aí.
Reside, sim, na alteração do paradigma da prestação de cuidados de saúde: queremos uma Medicina centrada nas necessidades da pessoa em contexto de saúde, preventiva, preditiva, que recorra às novas tecnologias e com profissionais aptos a prestá-la. O essencial não é tratar a diabetes, é preveni-la; não é emagrecer obesos, é evitar que o sejam. Queremos a interligação das diferentes políticas públicas para prevenir que quem sai do hospital com uma pneumonia tratada não regresse, na semana seguinte, por não ter meios para se alimentar devidamente. Queremos que a pessoa não seja sujeita a incómodos ciclos de quimioterapia se houver uma nova tecnologia alternativa. Isto implica uma refundação do sistema de saúde português no quadro dos valores constitucionalmente consagrados, em particular, o da dignidade da pessoa humana.
Este refundar supõe um esforço de lucidez, de rigor e de transparência para o qual a Comissão criada para o efeito e presidida por Maria de Belém Roseira tentou contribuir: Que necessidades das pessoas em contexto de saúde urge satisfazer? Quais são as prioritárias? Que profissionais de saúde temos disponíveis para o efeito? Que condições de trabalho (dignas) devemos assegurar-lhes?
Supõe que se oiça atentamente, por exemplo, o atual descontentamento de muitos dos que recebem e prestam cuidados no Serviço Nacional de Saúde e se indague se ele tem razão de ser. E implica, no plano legislativo, que se abandone o adágio francês do “Por que fazer simples, quando se pode fazer complicado?”, revogando, adaptando, harmonizando, repensando, a teia de diplomas atualmente vigente, que dificulta a correta identificação do que está a funcionar mal no sistema de saúde, por responsabilidade de quem, e do que pode ser melhorado. Este esforço de clareza supõe que se contendam com interesses instalados nos diferentes sectores de atividade, sejam eles económicos, corporativos, ou de simples falta de vontade de alterar práticas profissionais e hábitos enraizados.
Mas temos a oportunidade, no nosso País, atenta a maturidade da nossa Democracia, de fazer o “cerco” à boa lei. De legislar, em matéria de Lei de Bases da Saúde, não como Napoleão, com o seu Code Civil, para mais de 200 anos, atenta a rapidez do progresso técnico-científico, mas para pelo menos 20. Sem ser necessário recorrer a atentados bombistas para nos fazermos ouvir (que, por vezes, no pós 25 de abril até mataram as “vítimas” erradas), nem exaltarmo-nos.
Com sossego, podemos nos diferentes e diversos níveis das nossas atividades, num exercício de cidadania consciente, contribuir para optar, desta vez, pelo “simples”: por uma boa lei que, sejam quem forem os seus autores, permita que as necessidades em contexto de saúde dos Portugueses sejam efetivamente satisfeitas.
O que está em causa é excessivamente importante para que quem redige a lei exista. O que se pretende é que seja um texto claro, tecnicamente preciso e adequado, que permita que os direitos de todos e de cada um em contexto de saúde sejam respeitados. Professora de Direito de Saúde e da Bioética da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico