A arte de disfarçar a inferioridade
É um dos grandes clichés do futebol: “Jogar contra 10 é muitas vezes mais difícil do que jogar contra 11”. Em absoluto, é um raciocínio que contraria a aritmética e a lógica, mas no devido contexto é possível perceber de onde deriva essa sensação. A forma como o Tondela escondeu as suas fragilidades durante praticamente metade do encontro frente ao Sporting é apenas o mais recente exemplo de como a organização colectiva é capaz de reduzir diferenças.
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É um dos grandes clichés do futebol: “Jogar contra 10 é muitas vezes mais difícil do que jogar contra 11”. Em absoluto, é um raciocínio que contraria a aritmética e a lógica, mas no devido contexto é possível perceber de onde deriva essa sensação. A forma como o Tondela escondeu as suas fragilidades durante praticamente metade do encontro frente ao Sporting é apenas o mais recente exemplo de como a organização colectiva é capaz de reduzir diferenças.
Basta recuarmos até ao início do presente século para identificarmos um ponto de viragem conceptual, ilustrado pela progressiva democratização da defesa à zona. Um “pormenor” que ajudou, por exemplo, a lançar as bases do estrondoso sucesso de José Mourinho no arranque da carreira e que, aos poucos, foi arrebatando seguidores mesmo entre os treinadores que cresceram a ouvir falar na marcação individual como uma verdade indiscutível.
Hoje, é difícil rebater o argumento de que a zona é a forma de organização defensiva que melhor contributo dá para a autonomia da equipa que procura a bola. Na medida em que promove uma ocupação tão racional quanto possível dos espaços, permite definir com precisão onde se quer defender e de que modo, impedindo (quando arquitectada com competência) que o adversário ludibrie um conjunto disperso de jogadores voluntariosos em função das suas conveniências.
No fundo, foram estes os princípios que nortearam o bem-sucedido guião do Tondela na 16.ª jornada da Liga. A partir do momento em que a referência passa a ser a bola e não o adversário, reduz-se quase em definitivo o risco de ser atraído para zonas escuras do campo, com o intuito de abrir buracos em sectores nevrálgicos. Seguindo estes ditames, a equipa que defende passa a agir, em vez de se limitar a reagir às intenções do rival, invertendo de certo modo os papéis: uma defesa zonal eficaz é capaz de cobrir os caminhos para a baliza e de obrigar, no limite, o oponente a circular recorrentemente a bola em terrenos mais recuados.
Não estamos a falar, ressalve-se, em juntar linhas e simplesmente seguir o princípio da aglomeração, no pressuposto de que muitas unidades apinhadas numa parcela de 30 ou 40 metros dificultariam a vida ao adversário. É inegável que esse “desenho” levantaria problemas mesmo a um rival tecnicamente mais capaz, como é o caso do Sporting, mas seria sempre insuficiente para alcançar aquilo que o Tondela conseguiu.
Basta atentarmos no posicionamento agressivo da equipa no lance que deu origem ao segundo golo. A partir do momento em que a bola chegou ao meio-campo ofensivo e foi dominada por Tomané, gerando a possibilidade de sair em apoio, Pité, Hélder Tavares e David Bruno rapidamente criaram uma situação de igualdade numérica no corredor direito, algo que só se tornou possível graças a uma ocupação racional (e ousada) do espaço antes de o Tondela recuperar a posse. Depois, a classe do avançado que cresceu no Boavista e no V. Guimarães fez o resto.
Pepa, um treinador que já deu provas cabais de grande clarividência na abordagem aos jogos com os “grandes”, para citar apenas os mais mediáticos, não cedeu um milímetro no plano de voo aquando da expulsão de Jaquité. Até então a defender em 4x4x2, a equipa reorganizou-se em 4x4x1, perdendo “apenas” a capacidade de pressionar mais alto e de condicionar a primeira fase de construção dos “leões”, na sequência do recuo obrigatório de Hélder Tavares para formar uma nova linha de quatro. Tinha forçosamente de ser assim? Não, mas esta foi a decisão que menos mudanças acrescentou em cima de uma mudança forçada. E deu resultado.
Há treinadores que, em circunstâncias análogas, com uma unidade a menos, preferem reformatar a equipa em 4x3x2, por exemplo. Um plano que fará mais sentido se os dois jogadores mais adiantados forem fisicamente capazes de esticar o jogo e de recuperar posições rapidamente no momento da perda. Ao pressionar de forma mais eficaz o rival na saída de bola (neste cenário com dois elementos), fica-se mais perto de evitar uma construção de qualidade, mas não é menos verdade que, uma vez batida essa primeira linha de pressão, haverá trabalho redobrado (leia-se uma amplitude maior de espaço a cobrir) para o trio de médios.
Longe de ser uma situação desejada, naturalmente, há muito que o condicionalismo de alinhar com um homem a menos deixou de ser uma fatalidade. Esteja a equipa preparada para aplicar com competência os princípios e subprincípios da defesa zonal e estará sempre um passo mais perto do êxito. Assim o treinador seja capaz de vestir o fato de alquimista e avançar com a operacionalização da ideia.