Houellebecq, um moderno à antiga

O novo Houellebecq, Sérotonine, que acaba de sair no mercado francês — edição portuguesa garantida para 2019 — é um Houellebecq à antiga.

Foto
Na altura das transformações iniciadas pelo #MeToo, Sérotonine regalar-vos-á como uma madalena de Proust estragada MICHELE TANTUSSI/GETTY IMAGES

Desde as cinco primeiras páginas, Michel Houellebecq colocou as suas balizas, as que se conhecem de cor e que têm a sua assinatura. Seria uma cínica estratégia de marketing para garantir a benevolência imediata dos admiradores, ou simplesmente o número de um velho cavalo de circo, mediático, que repete incessantemente as mesmas voltas? Sérotonine narra, de forma introspectiva-retrospectiva, a vida pouco gloriosa de um engenheiro agrónomo de 46 anos, fazendo-nos andar num vaivém incessante na existência, que ele qualifica de “desmoronar flácido e doloroso”, deste homem branco, um pouco azedo, bastante à vontade financeiramente, obcecado pela sua virilidade, perturbado por uma homofobia primária e racismo, francamente grosseiro com as mulheres, que trata num registo perfeitamente houellebecquiano. À antiga! E sempre, de novo, muito sexo, umas vezes muito cru, outras redundante e pesadão. Do sexo, o narrador (ou este é o próprio autor, tanto eles se assemelham, como é frequente nos livros de Houellebecq) fala com competência e frieza clínica, como a maior parte dos homens quando falam de mulheres entre eles: num campo lexical que sugere que as mulheres-objectos sexuais são os seus piores inimigos, vocabulário violento e marcial, tomado de empréstimo dos teatros de guerra. Na altura das transformações iniciadas pela vaga do #MeToo e do #BalanceTonPorc, minhas senhoras, Sérotonine regalar-vos-á, como uma madalena de Proust estragada, de recordações rançosas que prefeririam talvez esquecer.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Desde as cinco primeiras páginas, Michel Houellebecq colocou as suas balizas, as que se conhecem de cor e que têm a sua assinatura. Seria uma cínica estratégia de marketing para garantir a benevolência imediata dos admiradores, ou simplesmente o número de um velho cavalo de circo, mediático, que repete incessantemente as mesmas voltas? Sérotonine narra, de forma introspectiva-retrospectiva, a vida pouco gloriosa de um engenheiro agrónomo de 46 anos, fazendo-nos andar num vaivém incessante na existência, que ele qualifica de “desmoronar flácido e doloroso”, deste homem branco, um pouco azedo, bastante à vontade financeiramente, obcecado pela sua virilidade, perturbado por uma homofobia primária e racismo, francamente grosseiro com as mulheres, que trata num registo perfeitamente houellebecquiano. À antiga! E sempre, de novo, muito sexo, umas vezes muito cru, outras redundante e pesadão. Do sexo, o narrador (ou este é o próprio autor, tanto eles se assemelham, como é frequente nos livros de Houellebecq) fala com competência e frieza clínica, como a maior parte dos homens quando falam de mulheres entre eles: num campo lexical que sugere que as mulheres-objectos sexuais são os seus piores inimigos, vocabulário violento e marcial, tomado de empréstimo dos teatros de guerra. Na altura das transformações iniciadas pela vaga do #MeToo e do #BalanceTonPorc, minhas senhoras, Sérotonine regalar-vos-á, como uma madalena de Proust estragada, de recordações rançosas que prefeririam talvez esquecer.

É, portanto, ao sabor de idas e vindas, em diferentes hotéis de província, de nível médio, frequentemente retratados pela ementa e com o brio habitual do autor para essas passagens descritivas de objectos, desprovidos, na aparência, de qualquer interesse, mas onde se aninha a sua mestria, que o narrador mergulha no seu passado afectivo. As suas amantes, os seus amores, os seus amigos dos tempos de estudante: 20 anos depois de os ter deixado, revê-os, em geral para o pior: os seres desintegraram-se, as ilusões estão mortas desde há muito, os rostos sujos, os corpos fora de serviço. O road-movie melancólico desenrola-se, numa França neurasténica, entrecortado com a regularidade de um metrónomo por essas famosas informações técnicas ultradocumentadas sobre todos os assuntos, sobretudo os mais banais (ele tornaria fascinante o modo de utilização de um aspirador), por cenas de sexo cada vez mais estranhas e por momentos de suspensão, de introspecção “filo-psico” em que o narrador procura encontrar um contorno para as noções de felicidade, de felicidade conjugal ou amorosa, e de depressão pós-ruptura. Ele apresenta-nos uma sociedade mergulhada, como ele próprio diz, “num período globalmente desumano e merdífico”. O narrador, esse, consegue não se afundar graças a tomar com regularidade Captorix, um antidepressivo particularmente eficaz, mas que anula a libido.

Houellebecq polvilha Sérotonine com a maior parte dos temas escaldantes da sociedade, que apenas têm em comum terem agitado a opinião pública nestes últimos anos e terem passado pelo tambor louco da máquina de lavar mediática: os OGM, a ruína dos produtores de leite, criações intensivas e indignas de animais, o consumo excessivo de álcool dos jovens estudantes, pedofilia, fim crepuscular das grandes famílias da nossa velha nobreza francesa, etc..

Uma pequena trupe de personagens malvadas e maliciosas, estragadas ou deploráveis, reunidas deste modo num romance, como réplica daqueles anti-heróis dos anos 2000, políticos ou financeiros, lixo de altos voos, que tudo quiseram, de tudo se apossaram, tudo espoliaram e que, pela sua ganância, embora tivessem tudo, acabaram na prisão ou suicidaram-se, deixando atrás de si um mundo caótico. Os anti-heróis houellebecquianos parecem-se com eles, mas sem a envergadura financeira nem o destino. Vagueiam por este mundo sinistro que eles próprios ajudaram a criar, desfigurados, mal chegando a perceber que são os seus próprios carrascos. Amostras detestáveis das quais as gerações seguintes tentam livrar-se.

Michel Houellebecq outra coisa não espera, claro: a polémica e os protestos dos “bem-pensantes”, esses lerdos, dizem-nos, que estão em vias de matar a boa velha ordem patriarcal que serve tão bem a um grupo bastante restrito de machos, e mortífero para o resto da humanidade. Ser “bem-pensante” tornou-se um defeito, doravante é preciso pensar mal, é melhor. E quem melhor do que ele para saber como aproveitar-se das tempestades mediáticas para fazer levantar voo e levar até bem alto um livro? Não declarou ele, umas semanas antes da saída de Sérotonine, que Donald Trump era um dos melhores Presidentes americanos que alguma vez vira? Os “bem-pensantes” lerdos enforcam-se, ao passo que toda uma faixa da sociedade francesa aprova, hipnotizada por ideologias reaccionárias, identitárias, muitas vezes condenadas repetidamente pelos tribunais, defensoras do regresso do homem branco, possante e omnipotente. Houellebecq afunda-se cada vez mais neste discurso neo-reaccionário, que se encontra multiplicado à exaustão por alguns youtubers carismáticos e um pouco loucos, mas que satisfazem as multidões de jovens e menos jovens marginais que têm dificuldade em engolir que não estão sozinhos na Terra. Houellebecq sabe que mulheres, homens novos, “homos”, estrangeiros e progressistas não vão gostar do seu livro. Ele com certeza saliva por isso de antemão.

Sérotonine tem lugar também para fragmentos de uma grande piada, reflexões absolutamente pertinentes e, como tantas outras vezes, Houellebecq abre portas inesperadas. O olhar que ele mostra sobre as relações homem-mulher modificou-se, aprofundou-se, o que escreve o autor sobre a arte de já não se ser amado, tal como sobre aquele que sobrevive às suas tragédias sentimentais, é tocante de simplicidade e de justeza. Houellebecq toca, remói, atormenta as nossas certezas. Se é verdade que ele está ali onde o esperavam, é para melhor saltar e nos surpreender, desdobrando de repente por detrás de personagens tão habituais nos seus livros uma tela de fundo que nos mergulha em abismos meditativos. Convém, evidentemente, ler o último Houellebecq e ter assim a alegria de o detestar ou de se deprimir com ele. 

“A serotonina era uma hormona ligada à auto-estima, ao reconhecimento obtido no seio do grupo. Mas, por outro lado, era essencialmente produzida ao nível do intestino, e a sua existência era assinalada em numerosos seres vivos, incluindo as amebas. Que auto-estima poderia aproveitar às amebas?”(In Sérotonine).

[Tradução de Rita Veiga]