Portugal: ao segundo produtor europeu de bicicletas só falta... pedalar
Em 2016, era líder do ranking europeu de exportação de bicicletas; em 2017, caiu para o segundo lugar: ainda assim, Portugal tem a maior fábrica de montagem da Europa. Mas "o mercado [nacional] é pequeno e pedala pouco". O que falta?
Um olhar pela janela de uma das salas de reuniões da maior fábrica de montagem de bicicletas da Europa, em Vila Nova de Gaia, já deixa perceber o que aqui se passa. Seis linhas de produção metodicamente organizadas e algumas dezenas dos 700 funcionários da empresa estão encarregues de construir mais de um milhão de bicicletas por ano. Um guiador começa por ser montado no início da cadeia, passa de mão em mão, é acrescentada peça a peça. No final de cada linha aparece uma bicicleta pronta a ser encaixotada e a sair da fábrica da RTE Bikes, quase sempre com o cliente estrangeiro como destino.
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Um olhar pela janela de uma das salas de reuniões da maior fábrica de montagem de bicicletas da Europa, em Vila Nova de Gaia, já deixa perceber o que aqui se passa. Seis linhas de produção metodicamente organizadas e algumas dezenas dos 700 funcionários da empresa estão encarregues de construir mais de um milhão de bicicletas por ano. Um guiador começa por ser montado no início da cadeia, passa de mão em mão, é acrescentada peça a peça. No final de cada linha aparece uma bicicleta pronta a ser encaixotada e a sair da fábrica da RTE Bikes, quase sempre com o cliente estrangeiro como destino.
Há tanta coisa a acontecer que, ao assistir ao processo completo, nem é possível dar conta de como nem um minuto passa desde que um simples guiador se transforma numa bicicleta finalizada. É mesmo assim: naqueles breves segundos em que desviamos os olhos e voltamos a olhar, a bicicleta que lá está não é a mesma que vimos antes. Essa já está no camião. Contas feitas, são 500 bicicletas montadas por hora, entre um milhão e 200 mil e um milhão e 400 mil por ano.
São estes os números que fazem da RTE Bikes a fábrica de montagem de bicicletas líder de exportação da Europa. Até porque, do mais de milhão de bicicletas produzidas, “95 ou 96% vai lá para fora”, refere Bruno Salgado, administrador, enquanto conduz o P3 numa visita pelos armazéns da empresa.
“O mercado em Portugal é pequeno e pedala pouco, por isso fica cá pouca coisa”, continua o administrador. A maior parte das bicicletas portuguesas segue para Espanha, França e Itália. Segundo dados do Eurostat, em 2017 estes mercados compraram mais de um milhão e 300 mil bicicletas a Portugal, o que representa quase 80% do que é produzido no país. No total, Portugal exportou cerca de um milhão e 730 mil bicicletas, número que o lança para o segundo lugar do ranking europeu, logo atrás da Itália, responsável pela exportação de um milhão e 758 mil, e à frente da Holanda, com um milhão e 610 mil velocípedes vendidos ao estrangeiro. A posição, apesar de privilegiada, é um recuo em relação a 2016, ano em que Portugal foi líder de exportações.
Mas, afinal, o que torna as bicicletas portuguesas tão apetecíveis? A resposta é simples: qualidade. “A nossa preocupação é trazer para a produção de bicicletas tecnologia que conhecemos de outros sectores mais evoluídos, nomeadamente da indústria automóvel, e fabricar uma bicicleta com os standards de processo e de qualidade dessas indústrias”, aponta Bruno Salgado.
Gil Nadais, presidente da Associação Nacional das Indústrias de Duas Rodas, Ferragens, Mobiliário e Afins (Abimota), corrobora: “Somos reconhecidos por fazer, neste sector, produtos de qualidade. Até porque Portugal não está no baixo preço.” Uma comparação entre Portugal e Itália permite perceber que os italianos exportam mais, mas Portugal tem um valor de exportação superior em cerca de 20 milhões de euros. Quer isto dizer que, em média, uma bicicleta italiana custa perto de 115 euros e uma portuguesa custa quase 130.
Mas se, por um lado, Portugal assume uma posição de destaque nas exportações, o panorama não é o mesmo no que concerne à utilização da bicicleta. De acordo com um inquérito realizado em 2017 pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) à mobilidade nas áreas metropolitanas do Porto (AMP) e Lisboa (AML), 67,6% das deslocações ainda são feitas de carro na AMP, valor que desce para os 58,9% na AML — contra apenas 0,4% e 0,5% de bicicleta, respectivamente.
O que falta?
Porque é que produzimos tanto, mas não pedalamos? “Em Portugal não se vendem muitas bicicletas porque somos um mercado pequeno e, além disso, não existem muitas políticas activas, por parte do Governo, no sentido de estimular a aquisição da bicicleta”, justifica Gil Nadais. “As ajudas de custo dos funcionários públicos não prevêem a utilização da bicicleta, apenas as deslocações de carro”, contrariamente ao que acontece em “vários países", onde existem, por exemplo, "incentivos para a aquisição ou utilização da bicicleta como meio de deslocação para o emprego”, refere. É o caso da Holanda, onde se está a tentar criar um sistema que pague 19 cêntimos por cada quilómetro percorrido, de bicicleta, de casa para o trabalho.
Mais do que a falta de medidas de incentivo, a Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (Mubi) fala em “políticas de planeamento urbano e mobilidade que favorecem desmesuradamente a utilização do automóvel particular”, levadas a cabo “há várias décadas”. Ao P3, a associação lamenta a falta de “condições que proporcionem uma utilização fácil, conveniente e segura da bicicleta como modo de transporte” — até porque “o argumento mais utilizado por quem não usa a bicicleta como forma de deslocação é a falta de segurança.”
Apesar de não ignorar as “infra-estruturas dispersas que surgiram em Portugal nos últimos anos para a circulação de bicicleta”, a Mubi considera-as “medidas avulsas” que frequentemente sofrem “numerosos erros de planeamento, projecto e construção”, pensadas com “o propósito principal de não incomodar o automóvel” — reduzindo, assim, a utilidade para quem pedala. Lisboa, ainda assim, está a dar “os primeiros passos na promoção da utilização da bicicleta” em contexto urbano: as bicicletas partilhadas da rede Gira já contam com mais de 19 mil passes anuais activos.
Soluções? O alargamento do investimento em parqueamentos “adequados e seguros” nas cidades e nos interfaces de transportes públicos — de forma a potenciar a intermodalidade e reduzir as deslocações de carro — e, “acima de tudo”, uma “estratégia nacional para a mobilidade em bicicleta”, que abranja não só o investimento em infra-estruturas, mas também em “programas de incentivo à aquisição e deslocação em bicicleta".
Em Outubro de 2018, a Abimota e a Mubi, juntamente com a Federação Portuguesa de Ciclismo e a organização ambientalista Zero, enviaram ao Governo um conjunto de propostas de fomento ao uso de velocípedes — entre elas a extensão, no Orçamento de Estado (OE) para 2019, de apoio financeiro à compra de bicicletas eléctricas, aprovada após propostas de alteração ao OE pelos Verdes e Bloco de Esquerda.
Ainda que, para a Mubi, seja "muito pouco", a iniciativa poderá significar um novo olhar de Portugal em relação à bicicleta — já que, lá fora, os mercados têm os olhos postos nas bicicletas portuguesas. Na RTE, a produção em massa continua, agora atentos a novos clientes como a Alemanha, o Reino Unido e a Polónia, que deverá receber uma fábrica da empresa portuguesa em 2021. A ideia é aproximar a produção do mercado de venda, uma vez que a bicicleta, devido às suas dimensões, é um “produto que não viaja bem e tem um grande custo de transporte”. “Faz sentido produzir perto do centro da Europa, que está em expansão.”
Por cá, é preciso "mudar mentalidades", acredita Bruno Salgado. "As subidas e as descidas não são um problema com as bicicletas eléctricas", que ajudam a contornar os obstáculos orográficos das cidades. Para o segundo produtor europeu de bicicletas, o que falta — além de infra-estruturas — é dar ao pedal.
Artigo actualizado às 13h03 de 7 de Janeiro de 2019: foram corrigidos números relativos à utilização da bicicleta na AMP e AML.