O “assalto” à Banca Carige…
Quem quer que esteja por detrás deste tipo de operações parece acreditar que é possível “enganar todo o mundo todo o tempo”. E se calhar tem razão.
Em Itália, o grupo Banca Carige – que tem na sua origem uma instituição de penhores fundada em Génova em 1483 –, após uma maioria dos membros do conselho de administração do banco se ter demitido e vários meses de instabilidade neste órgão, foi colocado sob administração directa do BCE a 2 de Janeiro de 2019. O BCE nomeou três administradores executivos e três membros da comissão de supervisão, o que poderá indiciar que o BCE pretende uma venda ou fusão do banco.
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Em Itália, o grupo Banca Carige – que tem na sua origem uma instituição de penhores fundada em Génova em 1483 –, após uma maioria dos membros do conselho de administração do banco se ter demitido e vários meses de instabilidade neste órgão, foi colocado sob administração directa do BCE a 2 de Janeiro de 2019. O BCE nomeou três administradores executivos e três membros da comissão de supervisão, o que poderá indiciar que o BCE pretende uma venda ou fusão do banco.
A imprensa indica que foi a primeira vez que foi utilizado este instrumento legal, criado pela legislação europeia que estabeleceu o Mecanismo Único de Supervisão bancária, em vigor desde 2014. O BCE teve o cuidado de referir que somente nomeou os administradores, porque os anteriores membros do conselho de administração se demitiram de funções.
A demissão da maior parte dos membros do conselho de administração ocorreu na sequência da rejeição pelos accionistas do banco de um “plano de recuperação” acordado entre o BCE, a banca italiana e o Governo italiano para realizar uma emissão de cerca de 400 milhões de euros (M€) de capital na forma de dívida subordinada convertível em acções, dívida a ser subscrita maioritariamente pelos restantes bancos italianos (em 320 M€).
O “aumento de capital” proposto no plano de recuperação, provavelmente, daria o controlo accionista quase total do grupo Banca Carige aos restantes bancos italianos, por uma pequena fracção do valor contabilístico do banco, que passaria a ser, após o aumento de capital, de cerca de 2300 M€.
Talvez por essa razão, o “plano de recuperação” não tenha merecido a aprovação do maior accionista do grupo Banca Carige, a família Malacalza, com uma posição de 27,6%, que se absteve numa votação de accionistas, bloqueando-a, e desse modo precipitando o insucesso da operação de aumento de capital. Essa família investiu 400 M€ em recapitalizações desse banco desde 2015, mas a sua posição accionista só valia 25 M€ no final de 2018.
Demitiram-se ou foram implicitamente demitidos?
O comunicado do BCE coloca o banco central na posição de se ter visto forçado a intervir directamente no banco, nomeando os administradores, porque o Carige ficou sem administradores e o BCE não teria outra opção face à indefinição no banco. Mas parece pouco provável que as coisas se tenham passado assim.
Ou seja, os membros do conselho de administração da Banca Carige ter-se-ão demitido porque o “plano de recuperação” não foi aprovado. Mas demitiram-se porque não concordavam com o plano ou porque, concordando, em sintonia e abrindo caminho a uma administração directa do BCE, pretendiam sinalizar a sua divergência com a vontade do principal accionista do banco que bloqueou esse plano de recuperação?
Banca Carige robustamente capitalizado ou descapitalizado?
O pequeno banco, mesmo assim o 10.º maior de Itália, com activos totais de 23.960 M€ no final do 3.º trimestre de 2018 (quase o dobro dos activos do Banif em Setembro de 2015, antes da aplicação da medida de resolução a esse banco português) apresentava, em termos formais, um rácio de alavancagem (capital sobre activos totais) de 8,3%, muito acima do mínimo recomendado (3%) e resultados operacionais positivos nos primeiros nove meses do ano, apesar de se tratar do banco com menor nível de dívida pública italiana no balanço entre dez bancos italianos não identificados, mas que deverão ser os maiores de Itália.
Como a dívida pública italiana paga elevadas taxas de juro, maiores níveis de dívida pública no balanço de um banco tendem em resultar em margens de lucro mais elevadas, se a dívida for mantida até à maturidade.
No entanto, a quase totalidade desses capitais próprios do Caringe dependem de activos por impostos correntes e diferidos. Sem esses benefícios fiscais, os capitais próprios do banco seriam próximo de zero após prejuízos acumulados de 1400 M€ entre 2014 e 2017, sobretudo em resultado da constituição de imparidades para o crédito malparado, uma situação similar à de vários bancos da Zona Euro.
Engordar para abate?
A intervenção no grupo Banca Carige seguia o guião, já bem estabelecido, até à referida rejeição do “plano de recuperação” no final de 2018.
O banco realizou aumentos de capital accionista de 799 M€ em 2014, de 850 M€ em 2015 e de 544 M€ em 2017, i.e., 2200 M€, para os accionistas constatarem desde então que, sob a pressão do BCE, as imparidades para créditos malparados “consumiam” esse capital quase todo. Ou seja, os accionistas que acorreram aos aumentos de capital em 2014, 2015 e 2017 foram “otários”. Acreditaram nas promessas das autoridades que depois lamentaram informá-los que os aumentos de capital seriam insuficientes em face da inesperada (?) constituição de imparidades para crédito malparado, algo que já ocorreu em muitos outros bancos de países do sul, incluindo Portugal, como já aqui se referiu.
Não admira que os actuais accionistas se tenham oposto à emissão de dívida subordinada e que o valor de mercado das acções do banco em bolsa tenha caído para cerca de 0,015 euros, valorizando um banco com valor patrimonial de 2 mil M€ em menos de 85 M€.
O certo é que, no final do terceiro trimestre de 2018, o crédito malparado líquido de imparidades era de 2300 M€ – 15,7% do total de créditos concedidos pelo banco –, sendo que parte destes empréstimos estará garantida por activos dos devedores.
A margem de intermediação financeira do Carige, i.e., a diferença entre a taxa de juro nos empréstimos e nos depósitos, era de 1,6 p.p., no 3T de 2018. Ou seja, é uma margem de intermediação financeira significativa, considerando os actuais níveis das taxas de juro, o nível de crédito malparado e os elevados custos de financiamento do banco. A título de exemplo o BPI, um banco rentável, registou uma margem de 1,76 p.p., no 2T de 2018. Só que o BPI remunera os seus depositantes com uma taxa média de 0,03%, enquanto o Carige remunerava os seus depositantes a uma taxa média de 0,77%.
Prepara-se operação a la Veneto Banks ou a la BES?
A imprensa internacional refere que as duas opções em cima da mesa para o Carige são: uma operação de liquidação como a determinada pelo BCE em relação ao Veneto Banca S.p.A. e Banca Popolare di Vicenza S.p.A (BPVi) em Junho de 2017, ou uma medida de resolução a la BES.
O que parece altamente provável, em qualquer das operações, é que os capitais injectados no banco por privados sejam complementados por um volume significativo de dinheiros públicos, com o Governo populista de Itália a adoptar o mesmo papel passivo que anteriores governos de partidos do “establishment” quer em Itália quer noutros países, como Portugal.
Risco reputacional para o BCE de escândalo financeiro que mais tarde ou mais cedo verá a luz do dia
Este parece ser mais um caso em que um banco privado é progressivamente limpo, reestruturado – o balanço do banco cai de 38.000 para 24.000 M€ entre Dezembro de 2014 e Setembro de 2018 –, atingindo resultados operacionais positivos, para provavelmente depois, num acto de misericórdia final, ser intervencionado e “doado” em questão de dias, juntamente com uma enorme injecção de dinheiros públicos.
Ou seja, prepara-se mais uma recapitalização de um grande banco comprador do Banca Carige, provavelmente um grande banco italiano, recapitalização essa com dinheiros públicos e dinheiros expropriados aos accionistas do pequeno banco.
Quem quer que esteja por detrás deste tipo de operações parece acreditar que é possível “enganar todo o mundo todo o tempo”. E se calhar tem razão.
Certamente que a quase totalidade dos decisores, das autoridades europeias e nacionais, age de boa fé, de forma informada, acreditando que estas intervenções agressivas em bancos da Zona Euro são as melhores soluções.
Mas, na realidade, estas operações, que se sucedem desde o início da União Bancária, só são compreensíveis à luz dos interesses e do benefício de muito poucos.