Cumpre-se o sonho dos presos: serem libertados e terem à sua espera uma multidão

Nos últimos anos antes do 25 de Abril de 1974 as condições na Cadeia do Forte de Peniche tornaram-se menos rígidas, mas nem o convívio e a aprendizagem entre os detidos faziam esquecer que a liberdade não morava ali. A noite em que os portões se abriram ainda traz lágrimas aos olhos de quem a viveu.

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A televisão estava esquisita, naquela manhã de 25 de Abril de 1974. Quando José Pedro Soares e os outros presos da Cadeia do Forte de Peniche olharam para o aparelho, só viam um ecrã sem imagens, acompanhado pelo som de música clássica. “Pensámos: quem é que terá morrido?” Só quando anunciaram que, dali a momentos, seria lido um comunicado do Movimento das Forças Armadas, é que a esperança começou a bater no peito dos detidos. “Pfff, bestial!”, diz o membro da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), traduzindo o que sentiu naquele momento.

José Pedro foi um dos presos libertados quando, finalmente, se abriram os portões de Peniche (e de Caxias), na madrugada de 27 de Abril. Para trás, desde a Revolução, ficavam horas de negociações, que permitiram que todos os presos deixassem as duas prisões, e não apenas aqueles que não estivessem associados a crimes de sangue, como pretendia o general António de Spínola. Ficavam também horas de algum receio, porque, fechados no forte, os presos políticos não sabiam exactamente que tipo de golpe estava em marcha e se, de um momento para o outro, tudo poderia ruir. “Nessa noite, já não dormimos, estivemos sempre a conversar, porque as coisas podiam recuar, podia haver novamente repressão sobre os presos”, conta.

Os guardas também foram chamados pelos detidos e José Pedro Soares recorda o quão “atrapalhados” estavam, perante aquela mudança na situação política do país. “Eles próprios diziam: ‘Pois, nós estamos ao serviço de uns, mas, se isto mudar, nós somos apenas funcionários’”. O antigo preso político ri-se ao recordar “a forma como eles se foram querendo desculpar do passado que tiveram”.

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Entretanto, a televisão ia mostrando o que estava a acontecer. E não tardou que os presos assistissem, pelo ecrã a preto e branco, “ao ambiente de festa e liberdade” que se vivia; aos milhares de pessoas que enchiam as ruas de Lisboa. Em breve, já não precisavam da televisão, porque a festa estava ali, às portas do forte, onde acorreram familiares e amigos dos detidos, exigindo e aguardando a sua libertação. “Quando saímos, era o largo cheio de gente, foi inesquecível”. E José Pedro faz uma pausa, para recuperar a voz que lhe foge com a emoção. “Foi mesmo o sonho de todos os presos que aqui estiveram. Um dia poderem ser libertados e terem à sua espera uma multidão.”

José Pedro Soares estava lá para viver o sonho, para ver o largo em frente à cadeia repleto de milhares de pessoas a cantar “canções revolucionárias” e a gritarem “viva a liberdade!”; para ser abraçado pelos familiares e amigos que ali se juntaram a ele. Mas, antes, vivera o pesadelo. Quando a Revolução chegou, já estava em Peniche desde 1 de Junho de 1973, mas fora preso muito antes, a 1 de Julho de 1971, com apenas 21 anos, tendo sofrido barbaramente às mãos dos agentes da Direcção-Geral de Segurança (DGS) – a nova designação da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), desde 1969, já com Marcello Caetano no poder.

A 30 de Junho de 1971 José Pedro Soares participou na cerimónia militar do juramento de bandeira. Era operador de mecanografia na Central Mecanográfica da Força Aérea, em Alverca. Segundo uma carta que a sua mãe enviaria, mais tarde, ao Presidente do Conselho Marcello Caetano, o filho teve “licença o resto do dia”, pelo que foi passá-lo a Lisboa. “No dia 1 de Julho de manhã apresentou-se novamente e então prenderam-no sem ele saber qual o motivo”, escrevia. O rapaz foi detido pela Polícia Militar e imediatamente entregue aos homens da DGS. Motivo que consta da sua ficha na polícia política: “Actividades e organização da associação secreta e subversiva que denominam por ‘partido comunista português’”.

Para José Pedro, iniciava-se um doloroso período de tortura, de que muitos portugueses tiveram conhecimento detalhado, já que foi descrito, ao pormenor, na Circular n.º 13 da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (associação criada no final de 1969 e que nos últimos anos da ditadura teve um papel muito importante no apoio aos detidos e na divulgação das condições em que estes viviam), de 3 de Dezembro de 1971, e difundido, posteriormente, aos microfones da Rádio Portugal Livre, que emitia fora do país e era atentamente seguida pela DGS.

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José Pedro Soares foi sujeito a um duro e longo período de tortura: “Estive 33 dias e 33 noites sem dormir. Uma coisa brutal"

O relato impressionante fala dos espancamentos violentos a que o detido foi sujeito (a murro, pontapé, com um “chicote de tiras de cabedal entrançado”), dos dias de estátua, das ameaças constantes (que só tinha três hipóteses: “falar, morrer ou enlouquecer”, que lhe davam “um tiro na cabeça”, que o enforcavam) e do longuíssimo período de tortura do sono a que foi sujeito.

“José Pedro Soares sofreu um total de 820 horas de interrogatórios, [...] 21 dias e noites sem poder dormir. Permaneceu isolado desde 1 de Julho a 17 de Setembro”, lia-se aos microfones da rádio. Foram mais, segundo ele. “Estive 33 dias e 33 noites sem dormir. Uma coisa brutal. Estive com os meus camaradas aqui e não conheço ninguém que tivesse tanto tempo de tortura de sono como eu tive. Uma vez estive numa sala de interrogatório do dia 6 de Agosto ao dia 27 – 21 dias numa sala de interrogatórios. Só dormi uma noite, em Caxias. Acompanhado por médico, por enfermeiros. Quando acordei, estava todo inchado”, conta ao P2, no pátio do recreio do Forte de Peniche, entre os blocos A e B. As marcas físicas, sobretudo nas pernas, ainda subsistem.

Mas, apesar deste tratamento desumano, e tendo percebido, alguns dias após o início dos interrogatórios, que fora denunciado e que a sua participação nas actividades do PCP era amplamente conhecida da DGS, o rapaz nunca falou. Situação que, para José Pedro, deixou os agentes “enraivecidos” e terá contribuído para a brutalidade a que foi sujeito. Nos autos de perguntas que fabricavam, tantas vezes, à revelia do que realmente tinha acontecido, os homens da DGS escreveram: “E sendo-lhe finalmente feito notar que a sua atitude de sistemática recusa (...) leva a pressupor a sua inteira obediência à ‘palavra de ordem’ imposta por aquele ‘partido’ aos seus ‘membros’, é convidado a abandonar essa atitude e a explicar concretamente todas as actividades de natureza partidária e conspirativa que desenvolveu, respondeu que se recusa a responder.”

José Pedro Soares seria acusado – antes de o seu caso ser transferido para o Tribunal Militar – no mesmo processo de outros membros do PCP, incluindo José Ernesto Cartaxo. Os dois faziam parte da mesma célula do partido e reuniram-se várias vezes, no âmbito da actividade que aí desenvolviam. Cartaxo, que tinha 28 anos quando foi preso, a 6 de Julho de 1971, também foi torturado pela DGS e condenado a 23 meses de prisão. José Pedro, considerado pelos instrutores do processo como “o ‘elemento’ mais categorizado e responsável do ‘partido’” do grupo de acusados, receberia uma pena de três anos e meio de prisão, que só foi interrompida pelo 25 de Abril. Mas, por causa da transferência do seu processo para a esfera militar, José Pedro chegou a Peniche bem depois de Cartaxo. Este último entrou no forte a 10 de Abril de 1972, o mais novo apenas a 1 de Junho do ano seguinte.

Curiosidade e expectativa

Ambos, contudo, revelam que, na altura, partilhavam o mesmo sentimento de curiosidade em relação à fortaleza. “Sempre ouvi falar de Peniche como o local onde estavam os presos mais destacados na luta. Sempre ouvi falar de nomes, de pessoas que admirava muito. E quando me disseram que vinha para aqui, eu já estava condenado. Em vez de estar em Caxias, preferia vir para aqui”, diz José Pedro. José Ernesto Cartaxo refere mesmo que, depois da condenação, sentiu “uma certa ansiedade” por chegar a Peniche. “Porque o que é que constava lá em Caxias? Que lá era a escola secundária dos presos políticos e aqui era a universidade. Aqui é que estavam os grandes ideólogos, os grandes responsáveis do partido, e havia lendas, do Dias Lourenço [1915-2010], do Dinis Miranda [1929-1991], do Domingos Abrantes, do Ângelo Veloso [1930-1990], as fugas do Álvaro Cunhal [1913-2005], do Dias Lourenço, do Jaime Serra... A gente tinha uma certa ansiedade em vir para aqui. Ei, pá, vamos para a universidade.”

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José Ernesto Cartaxo lembra que depois da condenação, sentiu “uma certa ansiedade” para transitar de Caxias para Peniche. "Lá [em Caxias] era a escola secundária dos presos políticos, aqui era a Universidade"

A cadeia que encontraram era já diferente daquela que recebera Álvaro Cunhal, pela primeira vez, em 1937, quando os presos eram alojados nas antigas casamatas do forte, umas construções húmidas e escuras, sem quaisquer condições. E também diferente daquela que viu chegar António Borges Coelho, em 1957, quando as restrições na vida prisional tornavam o dia-a-dia quase insuportável. Disso mesmo dá conta José Pedro Soares. “Havia uma ideia de Peniche, junto ao mar, uma fortaleza com condições muito duras, de isolamento muito grande. Uma cadeia tipo americana, com muitas paredes e guardas lá em cima e cá em baixo. Cadeia de alta segurança. O regime prisional era muito doloroso, apesar de, no final, quando fui preso, já termos melhores condições. Já tínhamos televisão, já podíamos circular nos corredores durante o dia, só estávamos presos nas celas individuais durante a noite. Já recebíamos um jornal diário, já podíamos conversar uns com os outros. Tinham sido conquistas resultantes de muitas lutas dos presos, para termos mais visitas em comum, para termos mais assistência familiar, mais condições de saúde, melhor assistência médica, e fomos conseguindo...”

José Ernesto Cartaxo recorda muitas dessas lutas – os “levantamentos de rancho”; de quando decidiram não escrever aos familiares “enquanto não acabasse a censura” da correspondência e enquanto não pudessem escrever mais vezes; de quando tomaram a difícil decisão de não irem às visitas “para chamar a atenção dos familiares e do exterior, para pressionarem o director da cadeia no sentido de permitir mais visitas em comum”. “Isto aqui era uma luta constante”, diz, “e de alguma forma vivemos intensamente todas essas movimentações que, no fundo, visavam melhorar as condições prisionais dos presos políticos e chamar a atenção lá fora, porque havia a tendência para silenciar esta cadeia, a cadeia de alta segurança do regime.”

Aos poucos, os presos conquistaram alguns direitos – que nunca eram totalmente garantidos, porque as decisões podiam ser revertidas – e nos últimos anos do regime já se podia jogar voleibol no pátio do recreio entre os blocos A e B, depois de ali ter sido montada uma rede para o efeito. A televisão permitia-lhes ver, por exemplo, os programas do maestro António Victorino de Almeida, que Cartaxo diz serem “bebidos” pelos presos, e também se permitia a partilha dos bens alimentares enviados para os presos – a “comuna”, como lhe chamavam.

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Havia, contudo, coisas que não mudaram e que ambos recordam intensamente, como o ruído incessante e enervante do apito dos guardas prisionais, que geria todo o dia dos presos. “Levantávamo-nos muito cedo, com apitos dos guardas. Depois batiam com o pau. Há uma coisa que me aflige e que se passava na altura, no dia-a-dia. Todos os dias, quer em Caxias, quer aqui, os guardas prisionais passavam o cassetete nas grades, e aquilo está-me marcado, fazia um ta-ta-ta-ta-ta... Era para verificar, ao fim do dia, se havia alguma grade que tivesse sido serrada, porque se estivesse já fendida, o som acusava logo. Este barulho – este e o das furnas – martelou-me”, recorda Cartaxo.

Álvaro Ribeiro Monteiro, de 76 anos, também não esquece um barulho particular que os guardas faziam ao passar pelas grades das salas do Bloco A, em que esteve preso em Peniche, durante quase cinco meses, em 1972. “Eram provocadores. Muitas vezes passavam por nós, tiravam os cinturões e chicoteavam as grades, como se tivessem ali animais selvagens. Aconteceu várias vezes enquanto lá estive.”

Álvaro foi condenado no mesmo processo de Faustino Reis, hoje com 81 anos, que passaria cerca de 11 meses em Peniche, de onde diz ter saído “mais maduro”, “mais consciente politicamente e menos ingénuo, também”. “Passei a ser mais defensivo. Eu era um voluntarista”, diz Faustino, na Cooperativa Cultural Popular Barreirense. Na altura, relembra, dizia que sim a tudo o que lhe pediam. Funcionário da Singer, com dois filhos, tinha uma vida económica desafogada e não se coibia de pôr ao serviço do partido o automóvel que tinha e que a DGS acabaria por apreender.

Diz que não guarda “traumas” de Peniche – ao contrário de Caxias, onde foi torturado durante os interrogatórios da polícia política – e que a mudança para a fortaleza até foi “positiva”, por causa do “convívio com pessoas já muito experientes”. “Agora, claro que numa prisão nunca é bom”, ressalva, afirmando que bastava falhar uma visita há muito ansiada, para que a depressão atacasse o preso. “Tive um período em que estava um bocado traumatizado com aquilo. As ideias mantinham-se intactas, mas estava um bocado traumatizado, até por causa dos filhos, da mulher. Faltavam-me três meses para sair, para completar a pena, fui despedido da companhia onde tinha um bom ordenado, uma posição, etc.. Fui despedido, fiquei sem um prego.” E tudo, suspira, sem cometer “crime nenhum”. “Só era um cidadão que praticava oposição ao regime fascista.”

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Faustino Reis, hoje com 81 aos, passou cerca de onze meses em Peniche, de onde diz ter saído “mais maduro”, “mais consciente politicamente e menos ingénuo, também”

Vampiros, CDE e denúncia

No caso de Álvaro Monteiro, foram precisas três detenções para que o homem nascido em Lisboa, mas que desenvolveu toda a sua actividade política antes do 25 de Abril no Barreiro, fosse efectivamente condenado. A primeira vez aconteceu em Dezembro de 1967, na sequência de um sarau cultural que organizara, enquanto presidente do Cine-Clube do Barreiro. O evento levou José Afonso, Carlos Paredes ou Odete Santos, entre outros, ao pavilhão do Luso Futebol Clube e fez com que a PIDE chamasse, para ser ouvido, o famoso cantautor português, que admitiria ter cantado Os Vampiros, depois de “muita insistência dos espectadores”, “canção esta que pensa ter sido retirada do mercado”.

Detido a 21 de Dezembro, Álvaro passa o Natal e o Ano Novo nos calabouços da polícia, foi torturado pela PIDE e acabou por ser libertado a 30 de Janeiro de 1968, sem qualquer acusação, por “não se apurar que o mesmo arguido mantenha ligações com o chamado partido comunista português”. Voltaria a ser preso a 3 de Maio de 1970, com os restantes candidatos do distrito de Setúbal pela Comissão Democrática Eleitoral (CDE) às eleições para a Assembleia Nacional de 1969, depois de ter participado numa manifestação do 1.º de Maio que, segundo um informador da PIDE, juntou “cerca de cinco mil pessoas” entre o Barreiro e a Moita.

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Álvaro Ribeiro Monteiro não esquece um barulho que os guardas faziam ao passar o cassetete pelas grades. "Eram provocadores", recorda

Os detidos foram enviados para o Porto – segundo a PIDE, por falta de condições do Forte de Caxias para os receber, devido a obras; segundo os opositores ao regime, para isolar mais os presos e dificultar o seu contacto com a família – e só regressaram a Lisboa a 30 de Junho. Julgados, só um é condenado por, sob tortura, acabar por admitir pertencer ao PCP. Álvaro é absolvido, mas não sem marcas, como revela numa carta enviada a um amigo, alguns meses depois: “Na PIDE, fui submetido à tortura do sono e estátua por um período total de 150 horas, sendo 50 consecutivas no Porto e 100 consecutivas em Lisboa. Em ambas as sessões de tortura fui violentamente agredido e perdi a consciência, tendo tido visões e fases de delírio.”

É só na sequência da traição do dirigente comunista Augusto Lindolfo, que levou à detenção de centenas de membros do PCP, que os agentes da PIDE/DGS conseguem, finalmente, a tão procurada prova de ligação de Álvaro Monteiro ao partido. Preso, como tantos outros, a 30 de Junho de 1971, é condenado a 20 meses de prisão e chega à Cadeia do Forte de Peniche a 25 de Fevereiro de 1972, onde cumpre os últimos quase seis meses de pena. Diz que foi transferido para ali “de castigo”, por ter participado num levantamento de rancho em Caxias. “E foi assim que eu fui conhecer Peniche. Eles até gozavam comigo: ‘Então, vieste cá passar férias?...’ Era a malta que estava lá há dez, 15 anos”, brinca.

Na sua memória, não foram umas férias agradáveis. “Era uma cadeia horrível, sem condições nenhumas. Para já, a parte climatérica da cadeia era medonha: humidade, frio, calor, horrível. E os presos tinham muito menos condições. Era duro, em 70 ainda houve espancamentos.” Álvaro Monteiro recorda um episódio relatado em circulares da CNSPP, que terá acontecido a 2 de Outubro de 1970, quando cinco detidos acusaram os guardas de, depois de um protesto, os agredirem “às cegas, com os cassetetes voltados, de modo a ferirem-nos com os aros de ferro dos mesmos”.

Na altura em que lá esteve, disse, nunca aconteceu uma situação do género, mas havia ainda muitos problemas por ultrapassar. Um dos que lhe pediram para tentar solucionar, escrevendo uma carta ao director (“quando se fazia uma carta ao director, normalmente havia um castigo”), foi a falta de luz nas celas. “Havia uma lâmpada de 25 watts na sala. Aquilo era uma cegueira, ler não se podia”, recorda. O problema pode parecer pequeno, mas era suficientemente preocupante para a CNSPP também se referir a ele. Na circular de 23 de Maio de 1970, além de denunciar o facto de a cadeia estar, “há meses, sem assistência médica suficiente”, a comissão referia: “Também em Peniche são frequentes os casos de doenças dos olhos entre os presos, por vezes com gravidade. Parece tratar-se de deficiências nas condições permanentes de iluminação e do campo de visão a que estão sujeitos os presos.”

Álvaro Monteiro diz que, no caso das lâmpadas, o requerimento ao director acabou por ser bem-sucedido, mas que muitas coisas faltavam ainda fazer. “Continuavam algumas regras muito complicadas do antigamente. Por exemplo, estarmos numa mesa de quatro e ninguém podia sair dali sem autorização do guarda; o guarda estar a vigiar todas as pessoas; termos de ter conversas em sussurros ou por escrito na mesa, num papel ou coisa parecida, porque eles estavam sempre à coca de tudo. Isto eram tudo situações de limitação, ou, melhor, de humilhação, no fundo, do prisioneiro.”

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Um dia depois de Monteiro chegar a Peniche, três outros presos políticos ouvidos pelo P2 cruzavam as muralhas do forte. Daniel Cabrita, Manuel Candeias e José Tavares Marcelino foram outras vítimas da denúncia de Lindolfo. Os dois primeiros foram detidos na vaga de prisões de 30 de Junho de 1971, Marcelino, apenas 15 dias depois, por estar, na altura, fora do país. Eram todos sindicalistas e acabaram por ser julgados no mesmo processo, tendo sido condenados, Daniel Cabrita, a “dois anos de prisão maior”, Manuel Candeias a 20 meses de prisão e José Tavares Marcelino a 16 meses. Entraram todos em Peniche a 26 de Fevereiro de 1972.

A morte saiu nos jornais

Dos três, Daniel Cabrita seria o que iria passar mais tempo em Peniche: um ano e quatro meses. O homem do Barreiro seria também aquele cuja prisão teria mais impacto público. Cabrita era presidente do Sindicato dos Empregados Bancários do Distrito de Lisboa, quando foi preso, numa altura em que estava a gozar férias em Sesimbra, e a sua detenção foi acompanhada por dezenas de bilhetes-postais, anónimos ou assinados, enviados para a DGS ou para a Caxias. “Não estás só: estamos todos contigo. Um Abraço”, “Liberdade para Daniel Cabrita” ou “Queremos-te entre nós sem demora” são algumas das mensagens que a DGS guardou nos seus arquivos. Ao mesmo tempo, o sindicato não se cansava de emitir comunicados, lembrando a detenção, o isolamento e os indícios de tortura. A 26 de Julho, uma manifestação de “centenas de empregados bancários, que protestavam contra a recente prisão do líder do seu sindicato, Daniel Cabrita”, é marcada por “violentos incidentes”, quando a polícia reprime o protesto “com inusitada severidade”, descrevia o jornal brasileiro O Estado de S. Paulo. “Cinco pessoas ficaram feridas durante os choques com a polícia. Ignora-se o número de detidos”, lia-se no diário.

O Governo reage, fazendo publicar comunicados em que se procura associar as detenções à “organização terrorista denominada ARA [Acção Revolucionária Armada]”. Logo a 3 de Julho, a DGS faz divulgar uma nota em que diz querer “prevenir as pessoas de boa-fé” para não se deixarem iludir pelos apelos à “solidariedade profissional” com os detidos. Os comunicados, que deixam no ar uma suposta ligação dos presos à ARA, continuam, e o resumo da acusação insiste na mesma tese, concluindo: “E, embora nos presentes autos não tenha sido possível atingir-se e penetrar-se na ARA […] se obtém a confirmação da interferência directa do ‘partido comunista português’ na acção terrorista da mesma, feita através do seu reconhecimento, apoio e auxílio.”

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A prisão de Daniel Cabrita foi uma das que mais impacto público causou, em 1972. Cabrita era presidente do Sindicato dos Empregados Bancários do Distrito de Lisboa e a sua detenção foi acompanhada por dezenas de bilhetes-postais de solidariedade

Após o julgamento, também a defesa de Cabrita é divulgada, num panfleto em que constam os 121 pontos apresentados pelo advogado Joaquim Pereira da Costa, com referências à tortura que o preso tinha descrito em pormenor – e que também seria divulgada pela CNSPP. Numa carta dirigida ao advogado, e que a DGS guardou, Cabrita referia, a 26 de Novembro de 1971: “Devido às precárias condições físicas e psíquicas em que me encontro, desconheço o teor das declarações por mim subscritas”. Seguia-se um longo relato do tratamento sofrido desde a detenção: “Estive durante 76 dias em rigoroso regime de isolamento”; os interrogatórios “decorreram em condições desumanas”; “fui obrigado a permanecer sem dormir por períodos que totalizaram 22 dias”; “tive alucinações terríveis”. Daniel Cabrita referiria ainda, num outro documento, que, por causa da tortura da estátua, ficou com os pés tão inchados que “um dos sapatos rebentou”.

A vertente pública do seu processo estava, contudo, longe de terminar – e por razões ainda mais dolorosas. A 2 de Agosto de 1972, quando o sindicalista já se encontrava em Peniche há mais de cinco meses, a mulher dele, Helena Cabrita, que escrevera diversas vezes aos responsáveis do Governo, denunciando a situação do marido, suicidou-se. “Esse foi o momento mais difícil, claro”, confessa Cabrita, referindo-se ao tempo passado no forte. Para o informar do que acontecera, os agentes da DGS “socorreram-se” de outro preso político: Domingos Abrantes. “Quando me é dado a conhecer o que tinha acontecido, estava presente o Domingos Abrantes. Acautelaram, digamos, essa situação. Foi o momento mais difícil, como deve calcular...”

A morte de Helena e o seu funeral são noticiados na imprensa clandestina e também no diário francês Le Nouvel Observateur. A PIDE/DGS é responsabilizada pelo sucedido e, de novo, pede-se a libertação de Daniel Cabrita. Mas esta só aconteceria quase um ano depois, a 30 de Junho de 1973, e, de novo, com um episódio pouco habitual. Sabendo que os bancários estavam a organizar um almoço de apoio ao colega, no dia da sua libertação, a DGS transferiu-o para Lisboa na noite anterior à data da saída, impedindo os festejos. “Pregaram-me um susto muito grande, porque pensei que ia ter as medidas de segurança, que ia ter a continuidade da prisão”, relembra. Acabaria por ser libertado à noite e a celebração, mais pequena, aconteceu então na sede do sindicato.

200 lâminas para uma fuga

Por essa altura, já os dois companheiros de processo que o tinham acompanhado na chegada a Peniche tinham partido há muito. José Tavares Marcelino, que recebeu a pena mais curta, foi o primeiro a sair, a 29 de Setembro de 1972, depois de estar sete meses no forte. Ironiza, dizendo que foi “um preso burguês”, porque foi durante a sua estadia ali que a televisão chegou à cadeia batida pelo mar. E que a “comuna” foi instituída. “Os familiares traziam as coisas para nós e eram distribuídas por todos”, conta. Uma partilha importante, sobretudo para os presos com menos condições económicas ou de locais mais distantes, cujas famílias raramente ou nunca apareciam para as visitas. E que só foi possível, de novo, graças à luta organizada dentro da cadeia. “Antes, era completamente vedado aos presos darem uns aos outros. Uns meses antes, dois irmãos que estavam cá, de Torres Novas, receberam dos pais maçãs e peras. Um ficou com as peras e o outro com as maçãs. Ou um com as azeitonas e o outro com a outra coisa. Estão a comer na mesma mesa, e um diz: ‘Toma lá isto, que gostas mais’. Foram os dois castigados. Os guardas não permitiam.”

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José Tavares Marcelino diz que foi “um preso burguês”, porque foi durante a sua estadia ali que a televisão chegou à cadeia batida pelo mar

Manuel Maria Candeias saiu de Peniche a 5 de Fevereiro de 1973, sendo transferido para o hospital-prisão de Caxias, de onde seria libertado no último dia daquele mês. Agora, que regressa ao antigo forte acompanhado pelo P2, segue, rápido, até à sala ao fundo do piso térreo do Bloco A e aponta para o revestimento do chão, afastando a poeira com o pé, num local onde um dos cantos do ladrilho é diferente do resto. “Olhe, olhe aqui. Está a ver este trabalho? Estes quatro ladrilhos – este, este, este e este – são os quatro que estiveram fora. Está marcado aqui, foi feito por mim. Isto aqui fui eu que fiz. Esta pedra é uma lasca, porque era preciso cortar isto, este canto, para tirar todos em volta. O primeiro a tirar foi este, com uma alavanca, uma colher. Gastei cerca de 200 lâminas, as serrinhas das injecções. Toda a gente estava a tomar vitaminas, mas nem sabiam. Há camaradas que estiveram aqui presos que nem sabiam.”

Candeias fala, ainda entusiasmado, de uma das “tarefas” que lhe foram atribuídas quando ali chegou: abrir caminho para uma fuga. Com as lâminas usadas para cortar as ampolas de vitaminas presas a uma caneta ou isqueiro, que funcionavam como cabo, ia libertando o pedaço de chão. A poeira que sobrava, levava-a colada às solas das sapatilhas, previamente molhadas numa ida estratégica ao quarto de banho. Na chegada ao pátio do recreio, batidelas com os pés no chão, fingindo uma frustração que não sentia, libertavam o cimento para o exterior. O plano acabou por não ser executado, por ele ou por outro, “porque se dá o 25 de Abril”, mas, como recordação, guarda no dedo de uma mão um alto, deixado pelas lâminas que ali se encostavam enquanto ele raspava e raspava o chão.

Com toda a infância vivida em Grândola, Manuel Candeias recorda-se bem das reivindicações dos agricultores. “Assisti às primeiras lutas pelas oito horas de trabalho no campo. Era muito miúdo, mas já fazia trabalho político porque ficava a controlar a proximidade dos bufos, dos pides, para os mais velhos se poderem organizar, naqueles plenários de campo, debaixo daqueles chaparros.” Quando foi preso, era sindicalista na TAP. Em Peniche, não se esquece da organização dos presos em luta. A sua tarefa de preparar o solo para um caminho de fuga não era sequer conhecida de outros presos que com ele partilhavam a sala, recorda. “Só três camaradas é que sabiam”, diz.

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das “tarefas” atribuídas a Manuel Candeias assim que chegou a Peniche passava por abrir, literalmente, caminho para uma fuga. Com as lâminas usadas para cortar as ampolas de vitaminas presas a uma caneta ou isqueiro, que funcionavam como cabo, ia libertando um mosaico de chão

Junto dele, José Tavares Marcelino acena em confirmação. Nos últimos anos da ditadura, além dos habituais presos ligados ao PCP, e dos mais esporádicos detidos ligados aos movimentos independentistas dos países africanos, o forte recebeu também vários detidos dos movimentos de extrema-esquerda que surgiram no país. Uns e outros nem sempre se entendiam. E as lutas que se organizavam nem sempre eram partilhadas – nem sequer entre os membros do mesmo partido. “Estávamos sempre na luta. Havia sempre um objectivo a atingir”, diz.

Quando ali chegaram, recorda, estava em curso uma discussão sobre se os prisioneiros deviam ou não limpar uma área comum do bloco, mais próxima da porta, que era ocupada pelos guardas. “Tentaram mobilizar-nos para não limparmos esta zona, que não nos pertencia, era dos guardas, por isso os guardas é que teriam de limpar. E diziam que nós não tínhamos que limpar, que os comunistas, que eram os mais antigos, eram uns cobardes e estavam a limpar isto. E nós estávamos quase… Parecia uma luta justa (…) e nós estávamos quase a embarcar, e então fomos informados, secretamente, cada um individualmente – porque não nos podíamos reunir em conjunto – que era importante nós fazermos isto. Porquê? Porque se nós limpássemos isto aqui – e isto era feito com um segredo enorme – íamos vazar o lixo ali [ao pátio] e tínhamos oportunidade de ir lá fora e olhar para aquelas celas [do Bloco B] e ver lá os presos. Não era eu, mas havia presos mais experientes que sabiam comunicar pelos lábios.”

“Envie-me para Peniche”

A 27 de Dezembro de 1972, Clemente Alves escreveu uma carta ao director-geral de Segurança, a partir do Forte de Caxias, onde estava preso, já depois de ter sido condenado a 14 meses de prisão por “actividades contra a segurança do Estado”, solicitando: “Dado que esta cadeia não é uma cadeia de cumprimento de pena, e ainda por não apresentar o mínimo de condições exigíveis que permitam ao preso, na sua qualidade de ser humano, o necessário equilíbrio físico e psíquico, sou deste modo a solicitar a V. Ex.ª para mandar proceder ao meu envio para a Cadeia de Peniche, onde sei que as condições são mais de molde à vivência diária de um ser humano”.

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No pátio entre os blocos A e B, sorri. “A expectativa que eu trazia é de que aqui ia estar com os meus camaradas mais velhos, que me podiam ensinar coisas, e assim foi.” Diz que era “um miúdo” (tinha 20 anos) e que a experiência de Peniche, naquele sentido, “foi um encantamento, por essa possibilidade de descobrir os outros na fraternidade plena”. Mas não foi só isso. “Por outro lado, eram duras as condições de vida na prisão. Eram muito duras. Passei aqui um Inverno terrível.”

Nos quase oito meses que ali esteve, entre Janeiro e Setembro de 1973, recorda o tema das fugas como algo recorrente nas conversas mantidas entre os presos. “Falava-se nas que tinham sido bem-sucedidas pelos outros. Eram uma questão constante. Mesmo não falando nelas, cada um de nós, cada um dos presos, a coisa mais constante em que pensava era: ‘Como é que eu poderia alguma vez sair daqui?’ Mesmo perante a impossibilidade, nós pensávamos nisto. Na possibilidade de sair aqui. Não para estarmos livres lá fora, para nos podermos movimentar livres, mas para poder continuar a lutar pelos ideais que nos transportaram aqui. A fuga era uma constante para nós, mesmo que nos faltasse muito pouco tempo de pena para cumprir. Até ao penúltimo dia, o que pensávamos era: ‘Como é que eu posso sair daqui?’”

E ele, preso na véspera do dia em que se ia casar, tinha esse incentivo adicional. Queria ver a noiva, estar com ela. Na única visita em comum que recorda, apesar das instruções para não tocar em ninguém, não resistiu e ia a levantar-se para abraçar a noiva, quando se viu na mesma sala que ela. O guarda deu-lhe uma palmada nas mãos. “Disse-me: ‘Se volta a repetir isto, acaba-se imediatamente a visita!’ E assim foi, durante a meia hora de visita. Foi uma visita de dor, de muito sofrimento, tanto para as pessoas que me vinham visitar, que tinham necessidade de me tocar, como eu tinha de lhes dizer: ‘Estamos aqui, obrigado por estarem também’. E isso foi terrível.”

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Em 1972, Clemente Alves pediu para ser transferido de Caxias para Peniche, onde estavam os presos políticos mais experientes. O seu desejo foi acatado. Apesar de o convívio com estes detidos lhe ter trazido "um encantamento", as más condições de vida na prisão mantiveram-se

O escritor Mário de Carvalho não usa adjectivos fortes para descrever os cerca de cinco meses que passou em Peniche, entre Maio e Outubro de 1973. Apenas uma certeza: “Essa experiência pessoal, eu não desejo a ninguém.”

Preso em Abril de 1971 “pelas suas actividades como ‘membro’ do ‘partido comunista português’”, foi condenado a dois anos de prisão maior, mas saiu em liberdade mediante o pagamento de uma caução, enquanto aguardava a decisão do recurso. Acabaria por ser detido em Abril de 1973, para cumprir a pena a que fora condenado, saindo em Outubro desse ano, em liberdade condicional.

Para ele, chegar a Peniche foi o fim “de uma longa história” que se habituara a ouvir, relacionada com a fortaleza. Ali encontrou “mais capacidade de respirar” do que em Caxias e nenhuma memória tão marcante como a do barulho dos gradões da cadeia do Aljube a fecharem-se, que lhe martelava a cabeça desde que ali ia levar as refeições ao pai, preso pela PIDE. Recorda-se dos jogos de xadrez, das horas de estudo, das lutas conjuntas, da humidade e do ruído do mar. “Conheci gente extraordinária, por um lado. O meu amor à liberdade ficou muito mais consolidado e o meu apego à democracia mais forte ainda.”

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Mário de Carvalho: "Não se prendem as pessoas por pensarem, por se organizarem, por se baterem politicamente naquilo em que acreditam"

Nos interrogatórios, não confirmou fosse o que fosse, nem sequer que o seu pseudónimo – algo que todos os membros do PCP tinham – era “Ricardo”. Olha, agora, para a prisão de que foi vítima como algo “absurdo”. E sorri, lentamente, na expectativa de que nunca se repita. “Não se faz aquilo às pessoas. Não se prendem as pessoas por pensarem, por se organizarem, por se baterem politicamente naquilo em que acreditam. Isso não se faz.”

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