No Ceia, à mesa de Pedro, partilhando o pão e o vinho
Uma mesa com 14 lugares, um espaço intimista, uma cozinha de autor, uma atenção especial a cada um de nós. Pedro Pena Bastos encontrou uma casa para a sua cozinha no Campo de Santa Clara, em Lisboa.
Entramos pela porta da guesthouse Santa Clara 1728 e somos recebidos com sorrisos por Alexandre e Mário, o chefe de sala e o sommelier do Ceia, o novo restaurante de Pedro Pena Bastos, em Lisboa. O jantar está marcado para as 20h, mas não entramos imediatamente para a sala.
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Entramos pela porta da guesthouse Santa Clara 1728 e somos recebidos com sorrisos por Alexandre e Mário, o chefe de sala e o sommelier do Ceia, o novo restaurante de Pedro Pena Bastos, em Lisboa. O jantar está marcado para as 20h, mas não entramos imediatamente para a sala.
Ficamos alguns minutos no hall, recebemos uma bebida fermentada preparada por Mário, provamos os snacks, trocamos as primeiras palavras com os outros clientes com os quais nessa noite iremos partilhar a mesa de 14 lugares do Ceia. Há um casal de americanos da Califórnia e daí a pouco irá chegar um casal de israelitas.
Quando Alexandre nos convida a passar à sala já sabemos o suficiente sobre eles para que a conversa possa fluir. E vai fluir de tal forma que Mário se vê obrigado a desculpar-se de cada vez que tem que interromper para apresentar um vinho ou dar alguma explicação.
A mesa e as cadeiras são de madeira, as cortinas de linho branco, os candeeiros são pequenos cilindros que pendem do tecto, sem ordem aparente, unidos por fios despenteados. “Tudo foi pensado até ao mais ínfimo detalhe”, conta Pedro Pena Bastos, antigo chef da Herdade do Esporão, no Alentejo. “A cor das paredes, a tonalidade e intensidade da luz, a forma como os cortinados de linho estão a raspar no chão, o que dá uma sensação de casa. Pensámos em muitas coisas, queríamos criar um sítio muito confortável, não demasiado descontraído, mas onde as pessoas se sentissem bem. Daí os elementos como a madeira, a pedra, o estuque.”
Dos lugares onde nos sentamos entrevemos a cozinha, ao fundo. Dizem-nos que podemos, se quisermos, ir até lá, ver o chef e a equipa a terminar de empratar, mas só o faremos já quase no final da refeição. Antes há muita coisa a acontecer, uma sucessão de pratos que nos vão sendo apresentados, umas vezes por Alexandre, outras por Pedro, os vinhos cuja história Mário partilha apaixonadamente, os ingredientes que também vêm para a mesa quando são mais desconhecidos ou surpreendentes, e a própria conversa que se vai desenrolando, solta, à medida que os comensais descobrem mais coisas em comum.
“O comportamento das pessoas é imprevisível”, diz Pedro Pena Bastos. “Mas acabam sempre por conversar. Às vezes começa de forma mais calma, outras vezes começa já no mindset certo e a partir daí é sempre a abrir e o jantar corre lindamente. Quando começa de forma mais calma, as pessoas acabam por se conhecer, claro que o vinho ajuda, o Alexandre e o Mário também.”
Para Pedro, esta relação com os clientes é determinante. Foi uma das razões para querer um projecto como este, uma mesa única, de poucos lugares, como se fosse um jantar de amigos. Na verdade, quando a proposta de abrir um restaurante neste hotel, parte do projecto Silent Living (que inclui as Casas na Areia, as Cabanas no Rio, ambas na Comporta, e a Casa no Tempo, em Montemor-o-Novo), Pedro andava a pensar noutros planos. “Tinha um projecto que era como um bolo em várias fatias, faseado para arrancar de x em x tempo. De repente, conheci o João [Rodrigues, do Silent Living] e no primeiro encontro passámos seis ou sete horas à conversa, entrámos numa relação muito familiar, muito pessoal.”
Quando conheceu o espaço onde hoje é o Ceia tudo passou a fazer ainda mais sentido. “Caiu que nem uma luva”, afirma. “Nem consigo bem explicar, mas achei que fazia todo o sentido. Às vezes as coisas não são bem como imaginamos, deixei-me levar por isto e estou super satisfeito.” O edifício do Campo de Santa Clara foi recuperado pelo arquitecto Manuel Aires Mateus – também responsável pelos outros projectos Silent Living. “Este espaço trouxe-me aquilo em que acredito: a materialidade associada à parte visual. Há aqui uma imponência que não é luxuosa, que é muito simples.”
Estamos sentados no pátio do Santa Clara 1728. “Nunca desenhei um conceito para aqui, ele surgiu naturalmente", continua Pedro. "Há uma dinâmica, uma simbiose, que casa a minha cozinha, a forma elementar como apresento as coisas, com muita complexidade, mas vista de uma maneira simples.” Aponta para o chão. “Estas pedras são lindas, parecem super simples mas há 365 neste jardim e são todas diferentes.”
É esta simplicidade que tem por trás uma grande complexidade que atrai Pedro. E, claro, a mesa comunitária. “Senti muito a falta do contacto com o cliente quando estava no Esporão. Esse contacto existia [no início da carreira] quando tinha uma empresa chamada A Revolta do Palato e fazíamos eventos privados. Isto foi um bocadinho voltar às origens mas de uma forma muito bem feita.” Por trás está a “vontade de aproximar as pessoas daquilo que servimos, ensiná-las, deixar-lhes um legado, colocarmos os produtos em cima da mesa, colocarmo-nos a nós na sala e elas perceberem que há uma paixão muito grande, uma dedicação, por trás de cada prato.”
Combinamos aparecer um dia ao início da tarde para conhecer os bastidores do processo que culmina cada noite (de quarta a sábado) no jantar para um máximo de 14 pessoas. Na zona de empratamento, Marco está a tratar dos legumes, cortando a abóbora, enquanto na cozinha Marina prepara a carne de veado e Pedro dá-nos a provar o gelado de levístico (espécie de aipo selvagem) que está a fazer.
Os clientes podem ser só 14, mas isso não significa que não seja tudo feito com enorme cuidado e atenção a cada detalhe – é disso que é feita a cozinha de Pedro Pena Bastos, a tal complexidade que se revela depois com uma aparência de simplicidade.
Chega, entretanto, um fornecedor trazendo uma peça de carne de vaca maturada, que vai ocupar a atenção de Pedro durante a hora seguinte. Corta-a, separa as gorduras, guarda as aparas para fazer molhos. Enquanto isso, David, outro dos elementos da equipa, prepara um arroz de peixe para o jantar do pessoal e Marina, que já tratou do veado, ocupa-se agora em partir o merengue com limão que retirou do forno.
Às 6h30 acontece o briefing diário – quantos clientes há, quem são, como estarão distribuídos na mesa, quem tem restrições alimentares. Pedro sugere substituições em alguns pratos porque uma das clientes está grávida, Mário enumera as bebidas que vai servir. Tudo se passa rapidamente, a equipa está já bem oleada, apesar de o restaurante ter apenas três meses.
Jantam rapidamente, em pé, na cozinha, o arroz cozinhado por David ainda fumegante nas taças, mas as atenções estão já todas viradas para o jantar que começará às oito. Afinal, foi para ele e para aquelas 14 pessoas que trabalharam toda a tarde. Durante as horas seguintes, todos estarão concentrados em fazer da refeição um momento especial.
A “materialidade” de que Pedro fala referindo-se ao espaço, às texturas, ao toque dos objectos, revela-se agora nos pratos – poucos elementos, sabores que nos interpelam, obrigando-nos a prestar-lhes atenção, mas que logo nos envolvem, reconfortando-nos: gamba rosa com acelga e yuzu; sarda curada com brócolos bringidos, num dashi, com puré de couve fermentada; uma ostra de três anos, com espargos e caviar de lima; abóbora Hokkaido com cogumelos trompetas da morte e capuchinhas; barriga de espadarte dos Açores com cebolas caramelizadas, castanhas laminadas, gel de algas e redução de citrinos; salmonete com funcho e girolles e o molho dos fígados, como em Setúbal; depois, um momento para o pão caseiro com manteiga envelhecida durante 30 dias (os restos do pão são usados para fazer o kvass, uma bebida fermentada da tradição eslava); papada de porco com cenoura em diferentes texturas e tagetes (flores); costela minhota com feijão-arroz e couve frisada. E as sobremesas: figos, cardamomo e erva príncipe, e cogumelos com marmelo e cacau, para terminar num irresistível conforto.
Esta ceia, não sendo a última, e não sendo uma experiência religiosa, tem possivelmente algo de profundo, talvez no encontro de pessoas que não se conheciam, na forma como, distraidamente, os nossos dedos vão tocando a textura dos materiais que nos rodeiam, nos risos que surgem, espontâneos, na troca e na partilha – de ideias, de sensações, de conhecimentos, e, afinal, do pão e do vinho.